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sexta-feira, 29 de junho de 2018

Levítico, Adoração e Serviço ao Senhor

“E porei o meu tabernáculo no meio de vós, e a minha alma de vós não se enfadará” Lv 26.11


Levítico, adoração e serviço ao Senhor

Caros professores, neste trimestre abordaremos um livro da Bíblia que para muitos é tido como difícil, hermético e impenetrável: o Levítico. Essa palavra provém da antiga tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, e seu significado é “Concernente aos levitas” ou “Com respeito aos levitas”.

O nome do livro revela que a obra sagrada foi escrita originalmente como um manual litúrgico para os levitas. Nesse aspecto, o Levítico contém a narrativa da maior parte do sistema de leis estabelecido por Deus para o Seu povo sob a administração do sacerdócio levítico.

Informações Básicas sobre o livro

Ao longo do livro, que com outros quatro formam o Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento), são destacados os seguintes conteúdos: leis sobre a santidade de Deus e o amor ao próximo; sacrifícios como parte da adoração; a pureza ritual e obrigações sociais; instituição do sacerdócio segundo a ordem de Arão; leis quanto à função sacerdotal dos levitas; estabelecimento da expiação dos pecados (o Dia da Expiação); leis que regulam as relações sexuais, a vida familiar, a punição de crimes graves, as festas sagradas e os anos especiais, como o sabático e o jubileu.

Essas descrições apontam para os seguintes objetivos do livro: purificar a nação escolhida das abominações do Egito; preservá-la das sujeiras morais e espirituais de Canaã; transformar a nação num povo separado por Deus para cumprir os propósitos divinos. Por isso, o livro tem o propósito claro de estabelecer a santidade de Deus na vida de seu povo: “Porque eu sou o SENHOR, vosso Deus; portanto, vós vos santificareis e sereis santos, porque eu sou santo” (Lv 11.44).

Esboço do livro de Levítico

DIVISÃO EM DOIS PRINCIPAIS BLOCOS
1—16 → Regulamento para o povo e os sacerdotes (o Código Levítico);
17—26 → Regulamento do relacionamento com Deus e com o próximo (o Código de Santidade).

DIVISÃO DO PRIMEIRO BLOCO (1—16)
1.1—6.7 → As ofertas do povo
8—9 → A instituição do sacerdócio arônico;
10 → Juízo de Deus e instruções para os sacerdotes;
11—15 → Leis sobre a pureza ritual para os sacerdotes;
16 → Instituição do Dia da Expiação.

DIVISÃO DO SEGUNDO BLOCO (17—26)
17—24 → O Código de Santidade para diversos comportamentos da nação e dos sacerdotes;
25—26 → Instituição dos anos sabáticos e do jubileu; bênçãos e maldições da aliança.


A verdadeira adoração a Deus compreende, necessariamente, o nosso serviço voluntário, santo e amoroso ao seu Reino.

Leitura Bíblica em classe: Levítico 27.28-34

Estudaremos, a partir de agora, o livro de Levítico, cujo tema pode ser resumido nesta simples, mas atual ordenança divina: “... portanto vós vos santificareis, e sereis santos, porque eu sou santo” Lv 11.44



Introdução

Embora seja visto, às vezes, como um manual de cerimônias estressante e monótono, o livro de Levítico vai além das celebrações e ritos que prescreve. No cânon divino, surge como parte viva, orgânica e essencial da História Sagrada. Por essa razão, sua atualidade não pode ser ignorada por nenhum cristão. Isso não significa, porém, que devamos submeter-nos à sua liturgia que, como muito bem explica o apóstolo Paulo, cumpriu-se plenamente em Cristo. Enveredando-se pelo caminho dos judaizantes, os gálatas caíram da graça; quase pereceram. Os princípios teológicos e devocionais de Levítico, todavia, são eternos; eram necessários ontem e continuam imprescindíveis hoje.

Nessa porção sagrada, deparamo-nos com três palavras-chave: adoração, santidade e serviço. Tais proposições servem de alicerce tanto à congregação israelita quanto à Igreja de Cristo. Ambas precisaram aprender, cada uma a seu tempo, a adorar a Deus e a reconhecê-lo como o Criador, Senhor e Mantenedor de todas as coisas. Em seguida, aprendemos com Moisés e Arão que, para agradar ao Senhor, temos de apartar-nos do mundo e separar-nos exclusivamente ao serviço divino. Eis o cerne da santificação preconizada em cada seção do livro de Levítico.

Já em suas primeiras linhas, é possível concluir que a adoração nada é sem a santificação, e a santificação, por sua vez, nenhum valor terá se não resultar em serviços ao Reino de Deus. Aqui está o fulcro do terceiro livro do Pentateuco. Ao chegarmos à última etapa desta obra, concluiremos: o Levítico é tão vivo, hoje, como no dia em que Moisés, inspirado pelo Espírito Santo, lavrou-o num papiro a caminho da Terra Prometida.

I. Levítico, um Livro por Excelência

À semelhança dos demais livros do Cânon Sagrado, o Levítico destaca-se por sua singularidade, origem e excelência. Vejamos, em primeiro lugar, a razão de seu nome e de sua estrutura.

1. O nome do livro. 
No original hebraico, o livro de Levítico é conhecido por suas palavras iniciais: Vaicrá que, literalmente, significam “e chamou” (Lv 1.1). Numa primeira instância, veremos, nesse enunciado, um chamado indireto de Deus a Moisés a escrever a terceira porção do Pentateuco. Em seguida, enxerguemo-la como a vocação direta de Deus a Israel a reerguer-se como nação santa, profética, real e sacerdotal.

Vaicrá tem, ainda, mais duas traduções possíveis: “e separou” e “e santificou”. Teologicamente, o chamado de Deus implica em nossa separação do mundo e em nossa imediata santificação ao serviço de seu Reino.

Na erudição judaica, o livro é conhecido também como Torath Kohanim – A Lei dos Sacerdotes. Já na Septuaginta, a versão grega do Antigo Testamento, o livro recebe o nome de Leuitikon, denotando-lhe o tema e o propósito: as coisas pertencentes ao ministério dos levitas. No latim, a sua designação é Leviticus. E, tendo em vista a origem românica do idioma português, nossos tradutores houveram por bem denominá-lo de Levítico pelas razões já apontadas.

2. Estrutura do livro.
Terceiro livro das Sagradas Escrituras, o Levítico é composto por 27 capítulos, 859 versículos e, aproximadamente, 24 mil palavras. Nele, são encontrados mandamentos, proposições, narrativas e profecias. Em suas páginas, há 26 promessas quanto ao proceder obediente de quem professa adorar a Deus.

3. Singularidade do livro.
O Levítico é um livro singular por duas razões:

1) É o único manual que temos na Bíblia referente à forma correta de se adorar a Deus; e

2) Embora dirigido aos sacerdotes, foi redigido por um profeta (Lv 1.1).


4. As divisões de Levítico.
Utilizaremos A Bíblia Explicada para esboçar o Levítico. Esse livro sagrado, de acordo com S. E. Macnair, pode ser dividido em nove seções principais:

1) As ofertas (caps. 1—6.7).

2) A lei das ofertas (caps. 6.8—7.38).

3) Consagração (caps. 8.1—9.24).

4) Uma transgressão e um exemplo (cap. 10.1—20).

5) Um Deus santo exige um povo santo (caps. 11—15).

6) Expiação (cap. 16).

7) A conduta do povo de Deus (caps. 17 e 22).

8) As festas de Jeová (cap. 23).

9) Instruções e avisos (caps. 24—27).

5. Origem divina e humana do livro.
À semelhança dos demais livros das Sagradas Escrituras, o Levítico é um texto verdadeiramente humano e verdadeiramente divino. Sua autoria fica bem patente logo no primeiro versículo: “E chamou o SENHOR a Moisés, e falou com ele da tenda da congregação” (Lv 1.1).

O livro tem como fonte o próprio Deus e, como medianeiro, Moisés. Inspirado pelo Espírito Santo, o profeta e legislador dos hebreus redigiu-o e encarregou-se de transmiti-lo aos levitas e aos demais filhos de Israel, seus leitores e ouvintes imediatos, e, depois, a nós, a Igreja de Cristo. É uma obra, pois, de dupla procedência e autoria: divino-humana.

6. Excelência literária do livro.
Que o livro de Levítico é inspirado pelo Espírito Santo, não há dúvida. Nós ouvimos a voz de Deus em cada uma de suas páginas; é um texto comprovadamente divino. Todavia, o que podemos dizer acerca de suas qualidades literárias?

Apesar de ser uma obra técnica, o Levítico não se perde naqueles jargões e tecnicismos que caracterizam os manuais. O seu autor humano, sempre guiado pelo Espírito de Deus, redigiu-o de tal forma que, passados mais de três milênios, sentimo-lo como se tivesse acabado de ser escrito. É importante observarmos que a sua redação não secciona a narrativa pentateutica da peregrinação dos israelitas à Terra Prometida.

Moisés escreveu o Levítico com tanto “engenho e arte”, que se tem a impressão de que essa porção da Bíblia Sagrada é a continuidade do Êxodo e a transição natural para os livros de Números e Deuteronômio. Temos, pois, diante de nós, uma obra de comprovada excelência literária. É bela e sublime; em seu gênero, inigualável.

II. A Certeza da Autoria Mosaica

Neste tópico, ressaltaremos as qualidades literárias de Moisés. Em seguida, veremos o idioma e a escrita usada pelo autor sagrado.

1. Deus, o autor divino.
Do primeiro ao último versículo de Levítico, sente-se claramente que Deus é o seu autor (Lv 1.1). Tal convicção não advém apenas das reivindicações formais do livro; advém, principalmente, da experiência do leitor com a obra. Pelo menos essa é a minha experiência pessoal.

Do início ao final de Levítico, o Senhor dirige-se a Moisés em 38 ocasiões diferentes. Patenteia-se, dessa forma, a origem divina da terceira seção do Pentateuco. Não há dúvida: é a palavra inspirada, inerrante e completa de Deus.

2. Moisés, o autor humano.
Não exagero ao afirmar que Moisés foi o homem mais sábio que o mundo já conheceu. É claro que faço essa afirmação depois de excetuar o Senhor Jesus Cristo que, além de sapientíssimo, era e é a própria sabedoria. Aliás, Ele é a Palavra de Deus encarnada. Nesse sentido, toda a palavra do Levítico era, essencial e tipologicamente, o oráculo do Filho de Deus.

Vejamos algumas qualidades literárias de Moisés.

Educado na corte faraônica, Moisés tornou-se um homem poderoso em palavras e obras. Sua cultura não se restringia ao Egito; era universal. Ele podia transitar por todo o Oriente Médio sem constrangimento algum. Já refugiado em Canaã, entrou em contato com a escrita sinaítica: um meio termo entre a pictografia egípcia e o alfabeto assurítico, que, no tempo de Esdras, seria adotado pelos escribas judeus.

Ali, nos prados midianitas, Moisés foi induzido, providencialmente, a trocar a primeira forma de escrita pela segunda. Em termos técnicos, pode-se considerar os signos sinaíticos como uma espécie de alfabeto. Será que os intelectuais egípcios conheciam os signos do Sinai? Talvez. Mas, à semelhança dos chineses, resolveram manter o seu complexo sistema de linguagem, a fim de não popularizar o conhecimento.

O estilo literário de Moisés foi divinamente forjado no deserto. Fugindo às ladainhas egípcias, foi conduzido didaticamente a sair da movediça e fantástica literatura faraônica até firmar-se num estilo firme, racional e próprio da literatura histórico-profética. Nesse período, deixa-se impregnar pela dicção poética, campesina e pastoral de seu povo. E, assim, depois de quarenta anos no exílio e, após muito pensar, o filho de Anrão e Joquebede estava preparado a lavrar as palavras que Deus, por intermédio do Espírito Santo, assoprar-lhe-ia na alma.

3. O idioma original.
Ao ser intimado por Deus a ser o pai da nação eleita, Abraão ainda não falava o hebraico, embora fosse reconhecido como hebreu (Gn 14.13). Seu idioma materno era, mui provavelmente, um caldaico primitivo que ainda lutava por desvencilhar-se das influências dialetais da Acádia. Nesse sentido, a língua de suas peregrinações pode ser classificada como pré-hebraica. Isso porque, em suas caminhadas por Canaã foi mesclando sua língua materna aos diversos falares cananeus. Como estes se expressavam em línguas igualmente semíticas, o patriarca não teve dificuldades em transitar pelos diversos reinos cananeus e, com estes, negociar e estabelecer alianças. O capítulo 14 de Gênesis mostra, implicitamente, a desenvoltura linguística de Abraão entre os povos de Canaã. Seria como um lusófono, alguém que fala português, a andejar numa área onde predominasse a hispanofonia, uma comunidade linguística que envolve todas as pessoas que têm em comum a língua espanhola.

Nos lábios dos patriarcas, a língua hebraica foi sendo paulatinamente formada ao longo de cinco séculos: do chamado de Abraão ao chamamento de Moisés. Um período que vai, de acordo com a cronologia bíblica geralmente aceita, do ano 2.000 a 1.500 a.C.

A estadia de Israel no Egito foi decisiva à consolidação do idioma hebraico. Ali, na distante Gósen, isolada no delta oriental do Nilo, os israelitas puderam desenvolver o seu idioma, livres das influências linguísticas dos cananeus e dos egípcios. Apesar de residirem no Egito, os filhos de Israel não mantinham contato com os habitantes da terra, uma vez que estes os consideravam abominação (Gn 46.34). Os súditos de Faraó não toleravam pastores de ovelhas, pois tinham o gado vacum e ovino como divindade.

Por conseguinte, quando o Senhor chamou Moisés a escrever os primeiros cinco livros da Bíblia Sagrada, a língua hebraica já estava devidamente formada. Faltava-lhe, porém, um sistema de escrita. Que signos adotar? Os hieróglifos egípcios? Ou a escrita cuneiforme das antigas Suméria e Acádia? Se Moisés tivesse optado quer pelos primeiros quer pela segunda, hoje não teríamos acesso às revelações do Gênesis e às narrativas da redenção de Israel.

4. A escrita pentatêutica.
Foi nesse período que Moisés descobriu a escrita sinaítica. Se comparada aos hieróglifos egípcios e às cunhas mesopotâmicas, ela pode ser considerada, de fato, um sistema alfabético. No entanto, prefiro classificá-la de pré-alfabética por duas razões: ela ainda estruturava-se em sinais pictóricos, e estava bem longe de usar vogais em seus fonemas. Mesmo assim, era um avanço admirável em relação às grafias dos vales do Nilo e do Eufrates.

O que poderia ter acontecido se Moisés, ao invés de usar a escrita sinaítica, tivesse optado pela egípcia ou pela mesopotâmica? Certamente, hoje, a História Sagrada seria um amontoado de signos incompreensíveis e sujeitos às mais bizarras interpretações. Aliás, nem os próprios israelitas achariam nelas qualquer sentido. Mas, graças a Deus, o profeta foi não apenas inspirado a escrever inerrantemente o Pentateuco, como também foi dirigido, pelo mesmo Espírito, a escolher o sistema de escrituração mais eficaz da época, para narrar os princípios da História Sagrada até a libertação completa dos hebreus. O alfabeto sinaítico (chamemo-lo assim) foi rapidamente assimilado pelos sábios de Israel que, sempre dirigidos e supervisionados pelo Espírito Santo, puderam dar continuidade à História Sagrada. Josué, Samuel, Davi e Gade, por exemplo, tornaram-se mestres na escrita do Sinai; grandes literatos (Js 24.26; 1 Sm 10.25; Sl 45.1). Aliás, pelo que inferimos de algumas passagens, era um sistema já bastante utilizado naquela região (Jz 8.14).

Na verdade, a escrita sinaítica nasceu entre os fenícios que, já naqueles dias, dominavam o comércio na região do Oriente Médio. E, para agilizar suas escriturações contábeis, entenderam por bem criar um sistema de registro mais dinâmico e eficaz. E, tendo como base os hieróglifos egípcios, elaboraram um pré-alfabeto que, séculos depois, seria adotado e aperfeiçoado pelos gregos e romanos.

Se bem atentarmos à história de Israel, perceberemos que, durante o exílio babilônico, os judeus vieram a trocar, de fato, o seu alfabeto pelo assurítico. Denominado escrita quadrática, devido à forma de suas letras, foi introduzido na cópia das Sagradas Escrituras mui provavelmente por Esdras. O eruditíssimo doutor e escriba, aliás, foi quem procedeu a última reforma editorial e gráfica do Antigo Testamento. Sem o seu trabalho, as Sagradas Escrituras corriam o risco de se tornarem um todo incompreensível. E, dessa maneira, viriam a cair no esquecimento.

O hebraico, como o lemos hoje no Antigo Testamento, é um legado tanto de Moisés quanto de Esdras, intermediados por filólogos como os homens de Ezequias (Pv 25.1).

A Moisés coube uma tripla e dificílima tarefa: adaptar a escrita sinaítica às necessidades linguísticas de Israel; gramaticar o hebraico e, finalmente, torná-lo uma língua literária. Nesse sentido, Moisés está para o hebraico como Martinho Lutero (1483-1546) está para o alemão. Sem o trabalho de ambos, separados por trinta séculos, hoje não teríamos nem a língua hebraica nem a alemã. Moisés, por esse motivo, não foi apenas o maior profeta da História Sagrada, foi também um dos maiores linguistas e filólogos que o mundo já conheceu. Infelizmente, os eruditos seculares, sempre preocupados em desconstruir a Bíblia, ainda não atentam a esse fato. Quanto a Esdras, coube-lhe uma missão dupla e igualmente dificílima. Em primeiro lugar, adaptou o alfabeto assurítico, usado pelos falantes do aramaico, ao hebraico do exílio. Já resolvido o problema alfabético, o grande e bem-conceituado doutor pôs-se a revisar linguisticamente as Escrituras Sagradas até então lavradas. Sua revisão, frisamos, não avançou além do campo filológico; ele não fez nenhuma mudança de conteúdo, pois a própria Escritura, a fim de preservar-se, proibia-o terminantemente (Pv 30.5,6; Ap 22.18.19). E, sobre as adaptações linguísticas, os editores sagrados não esconderam a sua participação (Gn 22.14; Dt 3.14; 1 Sm 5.5).

A mudança da escrita sinaítica para o alfabeto assurítico, conhecido hoje como hebraico, começou a ser feita no exato momento em que Daniel e seus companheiros chegaram à corte babilônica. Eles foram não somente obrigados a aprender a língua e a cultura dos caldeus, mas também constrangidos a assimilar o seu alfabeto (Dn 1.4). Afinal, os documentos oficiais eram redigidos, inicialmente, em arameu e no alfabeto assurítico, e, depois, nas demais línguas e alfabetos.

Hoje, temos o livro de Levítico na Bíblia Hebraica, não mais na escrita sinaítica, mas no sistema alfabético assurítico. Concernente à língua hebraica, em si, o que podemos dizer? O hebraico falado no tempo de Esdras seria perfeitamente inteligível a um israelense de nossos dias. Deus, portanto, reservou os meios mais eficazes (alfabeto, língua e trabalho editorial), para que tivéssemos, hoje, a sua Palavra como Ele a inspirou a Moisés e aos demais profetas.

III. Ocasião, o Nascimento de Israel

Ao datarmos a redação do livro de Levítico, temos de levar em consideração três coisas muito importantes: a ocasião da obra, a peregrinação e o aparente atraso e, finalmente, o estabelecimento da congregação israelita no deserto.

1. A data da redação do Levítico.
De acordo com a cronologia bíblica geralmente aceita, o livro de Levítico foi escrito por Moisés em 1445 a.C.. É claro que essa data não pode ser considerada exata, mas também não é absurda nem pode ser descartada. E, se levarmos em conta Êxodo 40.7, veremos que a redação da terceira parte do Pentateuco começou a ser feita um ano depois de os israelitas terem saído do Egito. Foi nessa ocasião, ainda, que o Senhor ordenou fosse erguido o Santo Tabernáculo no deserto.

2. O período do Levítico.
Moisés escreveu o Levítico num momento particularmente difícil da história de Israel. Os israelitas tinham acabado de sair de uma segunda apostasia. A primeira, como se recorda, foi o episódio do bezerro de ouro (Êx 32). Mas a segunda, embora não tivesse como motivação a idolatria, foi pior do que a primeira; tinha como fundamento a incredulidade que, a partir daquele momento, tornar-se-ia crônica na vida dos judeus.

Embora conhecessem a promessa feita por Deus a Abraão, os hebreus, contaminados pelo desânimo, não se animaram a apossar-se de Canaã. Foram, por isso, condenados a peregrinar no deserto por quarenta anos (Nm 14.34). Em meio a essa rebelião e apostasia, foi que Moisés, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu o Levítico, a fim de ensinar o povo a adorar o Deus Santo, Vivo, Único e Verdadeiro.

3. A peregrinação e o atraso.
Não fossem as duas grandes apostasias, Israel teria chegado a Canaã em, no máximo, dois meses. Mas, em consequência de seus pecados, os hebreus tiveram de voltear o Sinai por um período de quarenta anos, até que toda aquela geração de incrédulos caísse no deserto e, no deserto, fosse sepultada. Sem esse longo contratempo, o livro de Levítico poderia ter sido escrito em Canaã, sob circunstâncias mais favoráveis. E, quem sabe, o lamentável episódio de Nadabe e Abiú teria sido igualmente evitado, pois ambos, frutos daquela incredulidade, eram tão culpáveis quanto os dez espias que esparramaram o desalento pelo arraial hebreu.

Todavia, como o cronograma redentivo de Deus não pode ser atrasado pelas circunstâncias, aprouve ao Senhor entregar as regras e mandamentos levíticos em pleno Sinai. E, dessa forma, a nova geração de Israel adentraria Canaã com uma disposição renovada, apossando-se de vez da terra que mana leite e mel. Sendo assim, podemos dizer que o atraso ocorrido na peregrinação dos israelitas em direção à Terra Prometida foi providencial e didático. Sem a longa estadia no deserto, Israel jamais alcançaria o seu status de nação profética, sacerdotal e real.

4. A congregação no deserto.
Foi nesse período conturbado, que Deus ordenou a construção do Santo Tabernáculo. Neste ponto, vejo-me obrigado a levantar esta questão: se não fossem as duas apostasias de Israel, no Sinai, a tenda de adoração seria necessária?

Que os israelitas careciam de um centro de adoração ninguém o pode negar. Entretanto, se a peregrinação tivesse durado apenas sessenta dias, um tempo mais do que razoável, acredito que, ao invés de um santuário portátil, os israelitas seriam instruídos, pelo Senhor, a erguer uma casa definitiva. Isso, porém, só viria a acontecer quatro séculos depois da entrada de Israel em seu território. A desobediência traz retardos e atrasos em todos os sentidos. Eis porque devemos primar por uma vida de obediência ao Senhor.

IV. Os Objetivos de Levítico

À primeira vista, o livro de Levítico é um manual de cerimônia como outro qualquer. Todavia, uma leitura mais atenta leva-nos a ver, em suas páginas, pelo menos cinco objetivos: doxológico, hagiológico, didático, diaconológico e missiológico.

1. Objetivo doxológico.
No Êxodo, o Senhor demanda de seu povo uma adoração perfeita. Já no Levítico, ensina Ele, a esse mesmo povo, como alcançar esse alvo. Em suas páginas, observamos que, além da intenção do adorador, a adoração tem de processar-se de maneira correta e santa, pois o Senhor busca os que o honram em espírito e em verdade. Por isso, a partir do sacerdócio araônico, a adoração passa a ser considerada um serviço a ser prestado regular e corretamente ao Deus Santo e Verdadeiro.

A doxologia é o primeiro e mais elevado objetivo do livro de Levítico. Eis porque, no cerne de todo sacrifício e oferta, tem de estar o coração e a alma do adorador. Menos que isso é inaceitável.

2. Objetivo hagiológico.
A hagiologia não se limita a estudar a vida dos homens santos; seu objetivo inclui a pesquisa de coisas tidas como santas e o processo de santificação que as acompanha. Por essa razão, temos de ver os estágios de santificação de Israel como o segundo objetivo de Levítico. Isso porque, o Deus Santo e Verdadeiro requer, de seus adoradores, a mesma santidade e a mesma verdade. Aliás, o texto áureo desse livro é bastante claro quanto aos seus objetivos hagiológicos: “Fala a toda a congregação dos filhos de Israel, e dize-lhes: Santos sereis, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2).

A hagiologia bíblica abrange um duplo processo. O primeiro é separar o homem do mundo, para que ele, pelos meios da graça, santifique-se ao Senhor. O segundo leva esse mesmo homem, já separado do mundo, a santificar-se para o serviço de Deus. Conclui-se que a doxologia só há de ser perfeita se a hagiologia for completa na vida de quem professa amar e servir ao Senhor.

3. Objetivo didático.
Mas, como alcançar os objetivos doxológicos e hagiológicos demandados no livro de Levítico? A fim de que a adoração de Israel fosse perfeita, o Senhor providenciou um amplo e eficaz aparato didático. Somente assim o perfeito e santo Deus seria perfeita e santamente adorado.

Devemos, portanto, ver como didáticos os livros de Êxodo e de Levítico, pois o objetivo de ambos é conduzir Israel, para que este, perfeita e completamente instruído, viesse a servir a Deus em espírito e em verdade.

Se levarmos em conta os ensinos das epístolas endereçadas aos gálatas e aos cristãos hebreus, veremos o Santo Tabernáculo como um jardim de infância, no qual os israelitas, sempre conduzidos pelas mãos de Arão e de Moisés, deveriam aprender os primeiros rudimentos das verdades divinas (Gl 3.24,25).

Infelizmente, eles recusaram-se a crescer na graça e no conhecimento do Senhor; optaram por ficar na escola de pré-alfabetização; não avançaram jamais. Vendo esse retardo atingir inclusive os cristãos, o autor sagrado exorta-os a deixar os tipos e emblemas dos bens futuros e, nestes, fixarem-se (Hb 9.11; 10.1).

Hoje, não são poucas as igrejas evangélicas gentias que, embevecidas pelo esplendor do culto hebreu, buscam reviver festas e cerimônias judaicas, como se o templo cristão fosse mera sinagoga. Nosso compromisso com Israel é orar pela paz de Jerusalém, para que os filhos de Abraão retornem o mais depressa possível à sua herança, conforme preconizam os santos profetas. Quanto a nós, já saímos do jardim de infância espiritual. Eis porque devemos cumprir a terceira ordenança de Jesus: evangelizar até aos confins da terra.

4. Objetivo diaconológico.
Que Israel fora chamado a servir a Deus era algo que não podia ser ignorado nem pela nação como um todo, nem pelo adorador em particular. A doxologia, a hagiologia e a didática tinham de resultar, naturalmente, na diaconia de quem professa conhecer o Deus Único e Verdadeiro. Israel deveria erguer-se, necessária e urgentemente, como a comunidade servidora por excelência. Mas não foi isso que aconteceu. Os judeus tardaram em reconhecer a natureza de sua missão como filhos de Deus e herdeiros de Abraão. Se nos detivermos no espírito de Levítico, constataremos que o seu principal objetivo era preparar um povo obreiro ao Senhor.

5. Objetivo missiológico.
O verdadeiro santo não é aquele que se limita a não praticar o mal; é aquele que, apartando-se do mal, deleita-se em fazer o bem e servir a Deus. Refugiar-se num convento pode até ser eficiente para quem busca fugir à avareza, à prostituição e às intemperanças. Todavia, tal refúgio impedir-nos-á de praticar o bem. E quem sabe praticar o bem e não o pratica ofende a Deus; faz-se tão pecador como aquele que, intemperando-se, lança-se a todos os excessos. Por essa razão, entendamos de uma vez por todas: fomos salvos para divulgar o testemunho de Jesus Cristo.

Tal ensino pode ser encontrado na essência de Levítico. Portanto, à semelhança dos demais livros das Sagradas Escrituras, ele é, também, um livro missiológico. Se Israel, compenetrando-se de sua missão como povo de Deus, observasse os seus mandamentos, teria partido dali mesmo, em pleno deserto, a anunciar as grandezas de Deus. Mas, recolhido aos seus privilégios, limitou-se a reagir às agressões dos gentios. De que modo estamos agindo como Igreja de Deus? Agimos? Ou limitamo-nos a reagir às circunstâncias? Santifiquemo-nos! Testemunhemos de Cristo em toda e qualquer circunstância.

Conclusão

Conforme tivemos a oportunidade de ver, o livro de Levítico não é um simples manual de cerimônias. Se o lermos com reverência e cuidado, constataremos estarmos diante de um livro, cuja principal reivindicação é a nossa santificação para servir a Deus. O Senhor intima-nos a ser santos, porque Ele é santo. Mas que a nossa santidade não venha a isolar-nos do clamor do mundo. Embora separados deste, neste ainda estamos. Eis porque, como santos de Deus, temos o dever de apregoar a mensagem do Evangelho por todo o mundo.

O livro de Levítico continua tão atual, hoje, como no dia em que Moisés, inspirado pelo Espírito Santo, o escreveu. Que Deus nos ajude e, por intermédio do Espírito Santo, santifique-nos a cada dia.

Fonte:
Livro de Apoio – Adoração, Santidade e Serviço - Os princípios de Deus para a sua Igreja em Levítico - Claudionor de Andrade
Lições Bíblicas 3º Trim.2018 - Adoração, Santidade e Serviço - Os princípios de Deus para a sua Igreja em Levítico - Comentarista: Claudionor de Andrade

Aqui eu Aprendi!

sábado, 1 de julho de 2017

Inspiração Divina e Autoridade da Bíblia

Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” 2Pe 1.21

Propósito do Trimestre
Prezado professor, neste terceiro trimestre do ano estudaremos as principais doutrinas da fé cristã. Seguindo o esquema das principais teologias sistemáticas, inauguraremos o estudo deste trimestre tendo como tema a Bíblia: sua formação, autoridade e inspiração divina.

A Bíblia, Palavra de Deus
No tempo dos apóstolos ainda não havia a formação final do Novo Testamento. Quando se reunia para cultuar a Deus, a igreja neotestamentária lia o Antigo Testamento. E quando recebia as cartas apostólicas, as lia nas reuniões semanais. Posteriormente, essas cartas, e os evangelhos, foram paulatinamente aceitos pela igreja como escritos inspirados por Deus. Ora, havia alguns critérios para isso: como a autoria apostólica ou de pessoas que tivessem andando com os apóstolos que viram Jesus. Por direção divina, temos hoje os 27 livros reunidos em o Novo Testamento, mais os 39 do Antigo. Totalizando 66 livros na Bíblia.

O teólogo pentecostal, John R. Higgins, remonta os primórdios da formação da Bíblia Sagrada, mostrando que a composição dos livros da Bíblia está fechada e o que temos em mãos foi milagrosamente nos dado por Deus:

“O cânon bíblico está fechado. A revelação infalível que Deus fez de si mesmo já foi registrada. Hoje, Ele continua falando através dessa Palavra. Assim como Deus revelou a si mesmo, e inspirou os escritores a registrar essa revelação, Ele mesmo preservou esses escritos inspirados, e orientou o seu povo na escolha destes, a fim de garantir que a sua verdade viesse a ser conhecida. Não se deve acrescentar outros escritos às Escrituras canônicas, nem se deve tirar delas nenhum escrito. O cânon contém as raízes históricas da Igreja Cristã, e ‘o cânon não pode ser refeito assim como a história não pode ser mudada’” (Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal. CPAD, p.115).

Hoje, se temos uma Bíblia em mãos é milagre de Deus! Devemos agradecê-lo por nos entregar a Sua Palavra. E a melhor maneira de fazer isso é meditar nas Escrituras dia e noite (Js 1.8), de modo que ela esteja “encarnada” em nossa mente e coração. Revista Ensinador Cristão nº71

Cremos na inspiração divina, verbal e plenária da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé e prática para a vida e o caráter cristão.

Leitura Bíblica em classe: 2 Timóteo 3.14-17

INTRODUÇÃO

A Bíblia é a revelação de Deus escrita para a humanidade. Disso decorre o fato de ela ser nossa exclusiva fonte de autoridade espiritual. Sua inspiração divina e sua soberania como única regra de fé e prática para a nossa vida constituem a doutrina basilar da fé cristã. Essa inspiração é um fato singular que ocorreu na história da redenção humana. O enfoque da presente lição é sobre a importância e o significado dessa inspiração divina.

Cremos na inspiração divina e autoridade da Bíblia Sagrada.

Os credos e as confissões de fé têm sempre as suas explicações complementares e adicionais para tornar o documento cada vez mais claro. Esses documentos, como disse McGrath (2005), são “interpretações precisas e autorizadas das Escrituras”. Isso significa que se trata de doutrinas oficiais de uma igreja ou denominação, que norteiam a vida religiosa de seus membros.


A Bíblia é a revelada e inspirada Palavra de Deus.

Bíblia está traduzida atualmente para 2.935 línguas, segundo dados da Sociedade Bíblica do Brasil (A Bíblia no Brasil, nº 252 – agosto a outubro de 2016, Ano 68, p. 16). Todas essas versões transmitem a mesma mensagem dos antigos escritores bíblicos. Os oráculos divinos entregues a eles foram preservados e estão disponíveis para toda a humanidade. Sua inspiração divina e sua autoridade fazem dela um livro sui generis.


CÂNON E INSPIRAÇÃO

As palavras “cânon” e “inspiração”, às vezes, significam a mesma coisa. O termo kanōn se origina do vocábulo hebraico qāneh, “cana”, que se usava como “cana de medir” (Ez 40.3, 5; 41.8) e originalmente quer dizer “vara de medir”. Na literatura clássica, significa “regra, norma, padrão”. Aparece no Novo Testamento com o sentido de regra moral (Gl 6.16). É também traduzido por “medida” (2Co 10.13, 15). Nos três primeiros séculos do cristianismo, o termo se referia ao conteúdo normativo, doutrinário e ético da fé cristã. A partir do quarto século, os pais da Igreja aplicaram as palavras “cânon” e “canônico” aos livros sagrados, para reconhecer sua autoridade como textos inspirados por Deus e instrumentos normativos para a vida e a conduta dos cristãos, portanto separados de outras literaturas. Eles constituíram a partir de então uma “lista de livros com autoridade divina”, uma biblioteca que é a nossa medida, a nossa regra de fé e prática. O cânon é, assim, a lista de livros já definidos e reconhecidos como divinos para a vida e a conduta do cristão. Cada um dos livros era reconhecido como inspirado por Deus desde a sua origem, mas a coleção desses escritos sagrados só aconteceu posteriormente.

A inspiração divina é chamada de teopneustia, que significa “inspiração divina da Bíblia” (Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa) e “inspiração divina das Escrituras – teoria segundo a qual Deus inspirou aos autores bíblicos todas as palavras e todas as ideias” (Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, de Laudelino Freire). O Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, de Michaelis, repete as mesmas palavras de Laudelino Freire. O termo “teopneustia” vem da Bíblia: “Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (1 Tm 3.16) ou “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil” (ARA). A palavra grega aqui traduzida por “inspirada por Deus” ou “divinamente inspirada” é theopneustos, que vem de theos, “Deus”, e pneō, “respirar”. Isso significa que a Bíblia é respirada ou soprada por Deus. A construção grega nesse versículo permite ambas as traduções, mas a tradução da Almeida Atualizada é mais precisa, uma vez que a partícula grega kai vem entre os dois adjetivos “divinamente inspirada” e “proveitosa”; também expressa melhor a intenção do Espírito Santo, pois afirma duas verdades sobre a Bíblia: a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa. A ausência do artigo antes de grafē em pasa grafē teopneustos kai ōfélimos1 não deixa claro se a construção é atributiva, “Escritura divinamente inspirada”, ou predicativa, “[a] Escritura é divinamente inspirada”.

O termo grego pasa, feminino de pas, “todo, tudo, cada”, afirma que a inspiração das Escrituras é plena, total, por isso afirmamos a nossa fé na inspiração plenária da Bíblia. Mas essa crença não se fundamenta apenas nisso, e o contexto do Novo Testamento nos deixa à vontade nesse sentido. É verdade que no período apostólico a Bíblia da Igreja era o Antigo Testamento (Lc 24.44). O termo “Escrituras”, ou “Escritura” no singular, aparece inúmeras vezes no Novo Testamento como referência específica ao Antigo Testamento ou a parte dele e entre elas podemos citar (Mt 21.42; Mc 12.10/Sl 118.22, 23; Mt 26.56; Mc 15.28/Is 53.12; Lc 4.21/Is 61.1, 2; Lc 24.27).

A expressão “Toda Escritura” (2Tm 3.16) não se restringe apenas ao Antigo Testamento; diz respeito também aos escritos apostólicos, ou seja, ao Novo Testamento. A Bíblia inteira é divinamente inspirada, pois a autoridade dos profetas e apóstolos é a mesma. Ambos os grupos de escritores bíblicos aparecem alternadamente: “para que vos lembreis das palavras que primeiramente foram ditas pelos santos profetas e do mandamento do Senhor e Salvador, mediante os vossos apóstolos” (2Pe 3.2). Mais adiante, o apóstolo Pedro coloca as epístolas paulinas no mesmo nível nas Escrituras do Antigo Testamento: “Falando disto, como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição” (2Pe 3.16). O apóstolo Paulo considerava os escritos apostólicos no mesmo nível das Escrituras dos judeus: “Porque diz a Escritura: Não ligarás a boca ao boi que debulha. E: Digno é o obreiro do seu salário” (1Tm 5.18). Há aqui duas citações. A primeira vem da lei de Moisés: “Não atarás a boca ao boi, quando trilhar” (Dt 25.4); e a segunda não aparece em parte alguma do Antigo Testamento, mas nos evangelhos: “porque digno é o operário do seu alimento” (Mt 10.10); “pois digno é o obreiro de seu salário” (Lc 10.7). A construção grega revela que o apóstolo está citando o evangelho de Lucas.2 Ambas as frases são chamadas de “Escritura”. Outras vezes Paulo ousa dizer que seus escritos são de origem divina (1Co 7.40; 2Co 13.3; 1Ts 4.8).

Assim, a frase “Toda Escritura é inspirada por Deus” se refere à Bíblia inteira, aos seus 66 livros. A inspiração da Bíblia é especial e única. Não existe na Bíblia um livro mais inspirado e outro menos inspirado. Todos têm o mesmo grau de inspiração e autoridade. A inspiração plenária se refere à totalidade dos 66 livros bíblicos, e a inspiração verbal significa que cada palavra foi inspirada pelo Espírito Santo (1Co 2.13). Não somente as palavras, mas também as ideias são de origem divina: “porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (1Pe 1.21). A palavra grega usada aqui para “inspirados” é o verbo pherō, que significa também “mover, movimentar”. Os escritores bíblicos são homens santos que foram movidos pelo Espírito Santo para falarem da parte de Deus.

A inspiração verbal não elimina a individualidade de cada autor humano. Qualquer leitor da Bíblia consegue ver sem muito esforço a diferença de linguagem e de estilo em cada livro. Essa diversidade se revela ao comparar um profeta com outro profeta do Antigo Testamento, ou um apóstolo com outro apóstolo do Novo Testamento. Quem ler os profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oseias, Amós ou os apóstolos Pedro, João e Paulo pode observar com clareza meridiana a peculiaridade na estrutura de raciocínio de cada um deles, no seu grau de instrução, no seu convívio, no seu gênio e contexto sociopolítico e religioso. Assim, a Bíblia revela o aspecto natural da individualidade e o aspecto sobrenatural da inspiração.


1 Pa/sa grafh. qeo,pneustoj kai. wvfe,limoj.
2 Compare ἄξιος γὰρ ὁ ἐργάτης τοῦ μισθοῦ αὐτοῦ (Lc 10.7) com ἄξιος ὁ ἐργάτης τοῦ μισθοῦ αὐτοῦ (1Tm 5.18)


CREDIBILIDADE DOS TEXTOS BÍBLICOS

A quantidade enorme de manuscritos antigos, o grande número de versões em outras línguas e as citações da patrística nos primeiros séculos do cristianismo falam por si como prova da autenticidade dos livros da Bíblia. É assunto que nem mesmo os céticos questionam. Nenhuma obra da Antiguidade apresenta hoje tantos manuscritos hebraicos, gregos, latinos e em outras línguas. Temos hoje em todo o mundo mais de 25 mil manuscritos bíblicos produzidos antes do advento da imprensa no século XV. Em segundo lugar, vem a Ilíada, de Homero, com apenas 457 papiros e 188 manuscritos, perfazendo um total de 645 exemplares. Nenhuma obra da Antiguidade é mais bem confirmada que a Bíblia.

De todas as obras literárias produzidas na Antiguidade, o manuscrito mais antigo que sobreviveu apresenta um intervalo de 750 anos entre o tal manuscrito e a possível data de sua autoria. É uma obra de História, de Plínio, o Jovem, historiador romano que viveu entre 61 e 113 d.C. Restaram apenas sete manuscritos, e o mais antigo deles é datado de 850 d. C. Todos os demais, com exceção de Suetônio, também historiador romano, com 950 anos de intervalo o manuscrito mais antigo e a possível data de sua autoria, apresentam um intervalo superior a mil anos. É o caso de Platão, Tetralogias, sete cópias; e Heródoto, História, oito cópias, entre outros que não são citados aqui por absoluta falta de espaço (MCDOWELL, 2013, pp. 141, 142).

As descobertas dos rolos do Mar Morto revelam a credibilidade e a fidelidade dos textos hebraicos do Antigo Testamento. Com exceção do livro de Ester, todos os outros livros do Antigo Testamento estão representados nesses 800 manuscritos. As 11 cavernas de Uaid Qumran trouxeram à tona cerca 200 manuscritos bíblicos, descobertos entre 1947 e 1964, sem contar outros manuscritos não bíblicos. O primeiro grupo desses manuscritos é datado entre 250 a.C. e 68 d.C., com manuscritos escritos ainda na grafia paleo-hebraica, ou seja, o hebraico arcaico. Julio Trebolle Barrera faz menção de alguns deles: quatro de Levítico, dois de Gênesis, Êxodo e Deuteronômio, um de Números e um de Jó (BARRERA, 1999, p. 263). O segundo grupo é datado entre 70 e 132 d.C., período entre a destruição de Jerusalém e a Revolta de Bar-Cochbar, em Yavne, ou Jâmnia. Muitos desses manuscritos não foram produzidos pelos essênios; muitos deles vieram da Babilônia e do Egito. Trata-se, portanto, de textos procedentes de várias épocas e de vários lugares. Quando o alfabeto paleo-hebraico foi substituído pelo alfabeto quadrático, os escribas tiveram de fazer adaptações. O rolo do profeta Isaías, por exemplo, é datado do ano 100 a.C. É exatamente o mesmo texto da Bíblia Hebraica, exceto por uma diferença de apenas 17 letras no capítulo 53.

As inúmeras profecias são exclusividade das Escrituras Sagradas e provas visíveis de sua inspiração e autenticidade. Muitas delas já se cumpriram em relação a muitos povos, tanto na Antiguidade como na atualidade. Um exemplo é a queda de Babilônia: “E Babilônia, o ornamento dos reinos, a glória e a soberba dos caldeus, será como Sodoma e Gomorra quando Deus as transtornou. Nunca mais será habitada, nem reedificada de geração em geração” (Is 13.19, 20). Essa profecia foi proferida quando a Babilônia estava no apogeu de sua glória. Hoje, no entanto, essa Palavra se cumpre diante de nossos olhos.

A Bíblia anunciou de antemão a dispersão dos judeus, mas profetizou seu retorno à terra de seus antepassados. Depois de cerca de 1.800 anos na diáspora, os filhos de Israel retornam para sua terra, e em um só dia nasceu uma nação (Is 66.8). Essa Palavra diz respeito à fundação do Estado de Israel logo após a derrocada do nazismo.

Não é possível enumerar todas as profecias aqui. Mas destacamos as profecias sobre reis, como Ciro, rei da Pérsia, e Alexandre, o Grande, em Isaías 44.28; 45.1 e Daniel 8.21, 22, além das profecias messiânicas cumpridas em Jesus, desde o seu nascimento de uma virgem, em Belém, conforme Isaías 7.14 e Miqueias 5.2, até a sua ascensão, registrada em Salmos 24.7-10. Tudo isso faz da Bíblia um livro sui generis, que não se assemelha a nenhum outro e está acima de qualquer outro já produzido no mundo. A Bíblia declara a si mesma como a infalível Palavra de Deus: “a palavra de nosso Deus subsiste eternamente” (Is 40.8) e em fraseologia similar: “mas a palavra do Senhor permanece para sempre” (1Pe 1.25). É o único livro que se apresenta como a revelação escrita do verdadeiro Deus e com um propósito definido: a redenção humana.

A VERSÃO DOS SETENTA

A Septuaginta é a primeira tradução do Antigo Testamento hebraico para o grego. O termo “Septuaginta” vem do latim e significa literalmente “septuagésimo”, tendo sido usado pela primeira vez por Eusébio de Cesareia em História Eclesiástica. Agostinho de Hipona foi o primeiro a chamá-la de a “Versão dos Setenta”, em A Cidade de Deus. O termo “Septuaginta” é uma forma abreviada da expressão latina interpretatio Septuaginta virorum, “a tradução pelos setenta homens”, similar à forma grega katá tou hebdomēkonta, “conforme os setenta”, ou hoi hebdomēkonta, “os setenta”, todos usados por escritores cristãos do segundo século para referir-se ao Antigo Testamento Grego. Hoje é conhecido também pelo nome de “Versão dos Setenta, Versão de Alexandria” e identificado pelos algarismos romanos “LXX”.

A tradução do Pentateuco do hebraico para o grego aconteceu na metade do século III a.C., por 72 eruditos judeus enviados de Jerusalém para Alexandria; nos séculos seguintes, os outros livros do Antigo Testamento foram traduzidos. Foi um empreendimento cultural sem precedentes na história da civilização ocidental, pois a revelação divina saía do confinamento judaico para se tornar universal. Era o pensamento religioso semita à disposição do Ocidente numa língua indo-europeia.

Sua influência nos escritores do Novo Testamento foi determinante, servindo de ponte linguística e teológica entre o hebraico do Antigo Testamento e o grego do Novo. Tanto os apóstolos como os antigos escritores cristãos encontraram na Septuaginta uma fonte de conceitos e termos teológicos para expressar o conteúdo e o pensamento cristão. Ela foi usada pelas gerações de judeus helenistas em todas as partes do mundo antigo. Foi a Bíblia adotada pelos cristãos de língua grega, como disse Agostinho no século V: “A Igreja recebeu a versão dos Setenta como se fora única e dela se servem os gregos cristãos, cuja maioria ignora se há alguma outra. Dessa versão dos Setenta fez-se a versão para o latim; é a usada nas igrejas latinas. Serve, ainda, como fonte importante para o estudo da história da Bíblia Hebraica” (A Cidade de Deus, livro 18.43).

A TRADUÇÃO PARA OUTRAS LÍNGUAS TEM A APROVAÇÃO DIVINA

O projeto de tradução das Escrituras dos judeus para a língua grega num período em que nem mesmo o cânon estava fixado mostra ser a Bíblia um livro traduzível por natureza, sendo ao mesmo tempo o prenúncio de milhares de línguas para as quais a Palavra de Deus seria traduzida – as primícias de uma grande ceifa de versões em todo o mundo. A Bíblia completa está traduzida em 563 idiomas, o Novo Testamento em 1.334 línguas, e as porções bíblicas em 1.038 línguas. O total é de 2.935 línguas. São dados publicados pela revista A Bíblia no Brasil citada acima.

É a vontade de Deus que a sua Palavra seja conhecida por todos os povos e nações na sua própria língua. Essa aprovação divina é reconhecida pelo uso do grego na redação do Novo Testamento e pelas inúmeras citações diretas da Septuaginta. Isso mostra que não importa a língua, mas o conteúdo da mensagem. A Septuaginta “no transcorrer dos anos veio a ser o Antigo Testamento por excelência dos cristãos no vasto império romano. Quando a LXX foi acrescentada à coleção de livros do Novo Testamento era o surgimento de um novo livro, a Bíblia Cristã” (SOARES, 2009, p. 56).


A Bíblia Sagrada é a nossa única regra de fé e prática.


SUBSÍDIO TEOLÓGICO
“Através do mundo inteiro, qualquer crente, ao ler a Bíblia, recebe sua mensagem como se esta fora escrita diretamente para ele. Nenhum crente tem a Bíblia como livro alheio, estrangeiro, como acontece aos demais livros traduzidos. Todas as raças consideram a Bíblia como possessão sua. Por exemplo, ao lermos ‘O Peregrino’ sabemos que ele é inglês; ao lermos ‘Em seus passos que faria Jesus?’ sabemos que é norte-americano, porque seus autores são oriundos desses países. É assim com a Bíblia? Não! Nós a recebemos como ‘nossa’. Isso acontece em qualquer país onde ela chega. Ninguém tem a Bíblia como livro ‘dos outros’. Isto prova que ela procede de Deus — o Pai de todos” (GILBERTO, Antonio. A Bíblia através dos Séculos: A história e formação do Livro dos livros. 14ª Edição. RJ: CPAD, 2003, p.46).

“[...] Um resumo a respeito do que a Bíblia alega sobre si mesma pode ser encontrado em duas passagens principais. Pedro disse que os autores foram impelidos pelo Espírito Santo, e Paulo declarou que seus escritos foram soprados pelo próprio Deus. Portanto, a Bíblia alega que autores movidos pelo Espírito Santo expressaram as palavras inspiradas por Deus (2Pe 1.20,21). Em suma, os escritos proféticos (do Antigo Testamento) não tiveram sua origem nos homens, mas em Deus, que agiu por meio de alguns homens chamados de profetas de Deus” (GEISLER, Norman. Teologia Sistemática: Introdução à Teologia Sistemática, a Bíblia, Deus, a Criação. 1ª Edição. RJ: CPAD, 2011, pp.213,214).

ÚNICA REGRA INFALÍVEL DE FÉ E PRÁTICA
"Proveitosa para ensinar"
O propósito das Escrituras é o ensino para a salvação em Jesus, pois elas “podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus” (2Tm 3.15). São ensinos espirituais que não se encontram em nenhum lugar do mundo. A Bíblia revela os mistérios do passado como a criação, os do futuro como a vinda de Jesus, os decretos eternos de Deus, os segredos do coração humano e as coisas profundas de Deus (Gn 2.1-4; Is 46.10; Lc 21.25-28).

A conduta humana.
A Bíblia corrige o erro e é útil para orientar a vida sendo “proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (v.16b). Uma das grandezas das Escrituras é a sua aplicabilidade na vida diária, na família, na igreja, no trabalho e na sociedade. Deus é o nosso Criador e somente Ele nos conhece e sabe o que é bom para suas criaturas. E essas orientações estão na Bíblia, o “manual do fabricante”.

Fonte: Lições Bíblicas CPAD Adultos - 3º Trimestre de 2017 - Título: A razão da nossa fé — Assim cremos, assim vivemos - Livro de Apoio - Comentarista: Esequias Soares
Revista Adultos 3º Trim.2017 - A razão da nossa fé — Assim cremos, assim vivemos - Comentarista: Esequias Soares

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sábado, 26 de dezembro de 2015

A transição entre José e Moisés

"E disse José a seus irmãos: Eu morro; mas Deus certamente vos visitará, e vos fará subir desta terra à terra que jurou a Abraão, a Isaque e a Jacó." Gênesis 50:24

INTRODUÇÃO
O que aconteceu entre a morte de José e o nascimento de Moisés?

A Bíblia, com sutileza e arte, cala-se acerca dessa transição. Quanto à história secular, tem pouco a oferecer-nos. Não obstante, dispondo ou não de fontes pertinentes, é preciso reconstituir os quatro séculos entre o Gênesis e o Êxodo, para compreendermos a formação do Israel de Deus. Nesse período, os israelitas passam da fase tribal à nacional, transformando-se num povo tão grande e poderoso, que veio a ameaçar o Império Egípcio.

Neste capítulo, buscaremos recompor os acontecimentos entre os dois primeiros livros da Bíblia. Apesar do incômodo silêncio, é possível chegar a algumas conclusões surpreendentes. Já de início, adiantamos: o mutismo histórico-profético não descontinuou a narrativa sagrada, nem ignorou a força das profecias. O que o Senhor prometera aos patriarcas não caiu por terra; permanece inalterável até hoje.

Por conseguinte, no estudo da História Sagrada, atentaremos não somente ao que foi escrito, mas também ao que, providencialmente, foi omitido. Deus fala até mesmo quando se cala. Ele nunca deixou de revelar-se aos seus filhos, conforme garante o autor da Epístola aos Hebreus: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1.1,2).

I. QUATRO SÉCULOS DE SILÊNCIO HISTÓRICO
Na História Sagrada, há dois períodos de silêncio histórico. O primeiro, como já vimos, deu-se entre o Gênesis e o Êxodo. Já o segundo ocorreria entre o Antigo e o Novo Testamento. Por que esses hiatos? Tratemos essa questão com discernimento e cuidado, para chegarmos a conclusões plausíveis e reveladoras.

1. A preparação do cenário. Deus bem que poderia ter confiado, de vez, a Terra Prometida a Jacó e aos seus filhos. Afinal, já havia uma promessa, uma teologia bem definida e uma base étnica delineada. O Senhor, contudo, embora intervenha na História, não atropela processos históricos e sociológicos, pois almeja que o reconheçamos como o Soberano dos Céus e da Terra.

Por essa razão, da morte de José ao nascimento de Moisés, Deus põe-se a trabalhar em silêncio. Nesse período, os cronistas sagrados nada escrevem, nem profetizam os servos de Jeová. Entretanto, a História Sagrada não perde a sua continuidade, nem a profecia deixa de ser cumprida. O que Abraão ouvira do Senhor desenrolava-se naqueles séculos de mutismo histórico: “Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas” (Gn 15.13,14).

Enquanto isso, ia Deus preparando o cenário para o Êxodo. No Egito, multiplicava-se o clã patriarcal; as tribos transformavam-se num grande e temível exército. Já em Canaã, o amoroso Senhor dispensava o tempo necessário para que as nações, ali instaladas, viessem a arrepender-se de seus grosseiros pecados.

A saída dos israelitas do Egito, por conseguinte, só teria êxito se ocorresse no tempo certo. E, para tanto, era indispensável um cenário ideal, a fim de que os personagens separados por Deus pudessem atuar de forma decisiva.

2. A preparação dos protagonistas do Êxodo. Depois da morte dos 12 patriarcas, os israelitas tiveram de esperar 400 anos até que uma nova geração de líderes estivesse pronta. E, conforme sabemos, não é sempre que aparece um libertador com a fidelidade de Moisés, um sacerdote com a postura de Arão, ou um general com o coragem de Josué. É imperioso que a nação seja submetida a alguns processos históricos, sociológicos, políticos e teológicos, visando o seu amadurecimento. Tais processos são bastante morosos; requerem décadas e, às vezes, séculos.

Era imprescindível, pois, que os hebreus deixassem a fase tribal, a fim de se erguerem nacionalmente. Doravante, Deus não trataria mais diretamente com os patriarcas, mas haveria de tratar, através de seus profetas, com a nação. Os pais, contudo, jamais deixariam de ser lembrados como a principal referência teológica, ética e histórica dos hebreus. Nos momentos de crise e dificuldade, o Senhor apresentar-se-ia como o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Sua menção serviria, também, para lembrar aos israelitas que as alianças firmadas pelo Senhor com os antigos continuavam tão firmes quanto às leis que regem o Sol, a Lua, a Terra e as estrelas.

Portanto, seriam essenciais 400 anos de trabalho silencioso e metódico, para que o Senhor formasse os protagonistas do Êxodo. Não é da noite para o dia que aparecem homens da estirpe de Moisés. A ascensão de líderes, enfatizamos, demanda tempo, paciência, espera e oportunidade. A História Sagrada não ignora processos, nem despreza a ocasião propícia.

3. A espera do tempo da oportunidade. A História Sagrada não se baseia apenas no tempo cronológico; sua referência máxima é a presença de Deus na vida de Israel, da Igreja e dos gentios. Por esse motivo, o Senhor aguardou quatro séculos para intervir no Egito, objetivando libertar os filhos de Abraão daquele amargo e duro cativeiro.

A histórica secular divide-se em períodos e eras. Vai de uma fantasiosa pré-história a um pós-modernismo blasfemo e anticristão. A História Sagrada, por seu turno, não se prende a épocas ou fases; guiada pelo Espírito Santo, narra as intervenções de Deus no Universo. Não foi por mero acaso, portanto, que o Senhor aguardou quatro séculos para libertar os israelitas. Era sua intenção redimir não somente Israel, mas o mundo todo, pois todos nos achávamos escravizados pelo pecado. O êxodo hebreu prefigurava a redenção cristã.

Se lermos a História Sagrada sem a assistência divina, vê-la-emos como um mero processo político. Aliás, foi o que fizeram os proponentes da Teologia da Libertação na América Latina. A Bíblia, contudo, longe de ser um panfleto de libertação nacional, mostra o Filho de Deus como o redentor e salvador universal.

Sendo o evento pascal tão importante, aprouve a Deus silenciar-se por 400 anos, até que o tempo se fizesse oportuno. Se por um lado, a História Sagrada emudecia-se, por outro, a salvação era preparada no refúgio em Gósen.

II. GOSÉN, O ÚTERO DA NAÇÃO HEBREIA
Ao receber os irmãos no Egito, promete José ao velho pai que ainda se encontrava em Canaã: “Assim manda dizer teu filho José: Deus me pôs por senhor em toda terra do Egito; desce a mim, não te demores. Habitarás na terra de Gósen e estarás perto de mim, tu, teus filhos, os filhos de teus filhos, os teus rebanhos, o teu gado e tudo quanto tens. Aí te sustentarei, porque ainda haverá cinco anos de fome; para que não te empobreças, tu e tua casa e tudo o que tens” (Gn 45.9-11).
Ali, em Gósen, longe dos egípcios, os filhos de Israel haveriam de engrandecer-se como nação. Deixariam de ser dispersas e frágeis tribos, para se apresentarem como um povo forte, valoroso e único.

1. Gósen, uma terra excelente. Localizada no delta oriental do Egito, era Gósen uma terra de excelências. Ampla, fértil e mui receptiva, mostrava-se ideal a quem se entregava às lides do campo e à pecuária. Sendo os israelitas dados à agricultura e afeitos ao gado, receberam a oferenda do Faraó como algo providencial e divino.
A região de Gósen, embora isolada dos grandes centros, não distava muito de Mênfis, sede da corte egípcia, possibilitando a José visitar regularmente a família.

2. Refúgio espiritual. Jacó, acompanhado de seus filhos e netos, chegou a Gósen como peregrino do Senhor. Ele sabia que, apesar da amável acolhida de Faraó, o destino de sua família era a terra que Deus prometera a seu pai, Isaque, e a seu avô, Abraão. Por isso, seus descendentes teriam de preservar a fé no Deus Único e Verdadeiro. Caso contrário, perderiam a sua identidade espiritual e teológica.

Os israelitas eram uma ilha monoteísta cercada por um politeísmo militante, agressivo e sedutor. Os deuses egípcios achavam-se presentes em todas as cerimônias estatais, sociais e domésticas. Ali estava o orgulhoso Amom, chefe dos deuses e senhor de todos os ventos. Logo mais, apresentava-se Anúbis, a divindade que controlava a morte; não faltava aos funerais.
Como os egípcios davam-se às ciências ocultas, incensavam à erudita Ramras, simbolizada por uma coruja. Dokten era a deusa da guerra. Logo mais erguia-se Anukis, guia do Nilo e de todas as águas. Àpis, visto no boi, era o senhor da fertilidade. Não se pode esquecer a libertina Hathor. Simbolizada por uma vaca, era a diva do amor e da prostituição cultual. Isis, a senhora da magia, não faltava às celebrações do Faraó, pois entretinha o soberano com seus truques baratos e tolos.

Pelas ruas de Mênfis, era mais fácil encontrar uma divindade do que uma pessoa. Em Gósen, porém, habitaria um povo, cujo Deus não era representado na criatura, porquanto é o criador dos Céus e da Terra. Não habitava em templo algum, pois nem o céu dos céus seria capaz de contê-lo. Ali, naquele lugar isolado geográfica, social e espiritualmente, permaneceria Israel por quatro séculos.

Se os israelitas habitassem em meio aos egípcios, teriam desaparecido em duas ou três gerações. Primeiro, assimilariam a religião do Nilo. Em seguida, ver-se-iam casando-se com as idólatras e dando-se em idolatrias. Providencialmente, Deus isolou-os naquele recanto, para que não se contaminassem quer pela religião egípcia, quer pela cananeia. Aliás, o panteão cananeu era muito mais perverso, criminoso e deletério que o egípcio.

3. Refúgio histórico. Ali, naquele refúgio, os hebreus tiveram condições de preservar a História Sagrada. Remontando a Noé, num primeiro momento, e, depois, ao próprio Adão, eles sabiam que descendiam do ramo messiânico da progênie humana. E, que, através de uma de suas famílias, viria o Desejado de todas as nações.

Como o Gênesis ainda não havia sido escrito, fazia-se imprescindível que suas tradições orais e registros genealógicos se mantivessem incólumes. Por esse motivo, os israelitas não se misturariam, quer aos egípcios, quer aos cananeus. Doutra forma, a História Primeva transformar-se-ia num corolário de mitos, fantasias e blasfêmias.

A História Sagrada, que tinha agora os israelitas como guardiões, não poderia ter o mesmo destino que tivera entre os camitas e jafetitas. Os filhos de Cam desviaram-se logo, pervertendo a verdade divina. Quanto aos descendentes de Jafé, também não demoraram a transviar--se. O resultado de toda essa apostasia é descrito pelo apóstolo Paulo:
“Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!” (Rm 1.22- 25).

Infelizmente, até os próprios filhos de Sem caíram na idolatria. Naquele momento, portanto, havia apenas uma família que ainda resguardava a História Sagrada. Caso viesse a transviar-se, jazeríamos hoje em trevas teológicas e históricas. Não saberíamos como responder a estas perguntas: “Quem fez o Céu e a Terra? E de onde eu vim?”. Felizmente, em Gósen, o Senhor, preservando os hebreus, preservou os primórdios da História Sagrada.

4. Refúgio moral e ético. Resguardando-se da religião egípcia, os israelitas resguardar-se-iam também da moral dos que a seguiam. Os deuses do Nilo não eram melhores do que os da Grécia. Aliás, só mudavam de nome. Amom, por exemplo, era adorado pelos gregos como o adúltero e vingativo Zeus. Já a desavergonhada Hathor era conhecida nas cidades helenas como Afrodite, leviana e alcoviteira. Se os deuses não tinham moral, o que dizer de seus adoradores? Amom jamais poderia exigir dos que o incensavam: “Sede santos, porque eu sou Santo”. Santidade, aliás, era um atributo desconhecido nos panteões egípcio e cananeu. Por essa razão simples e óbvia, era imperioso que os filhos de Israel se isolassem da sociedade egípcia.

Os templos pagãos em nada diferiam de um bordel. Hathor, por exemplo, não se limitava à prostituição; incestuosa, apresentava-se como filha e esposa de Rá. Se os deuses eram tão libertinos e promíscuos, por que censurar o povo? As mulheres egípcias, altivas e vaidosas, não se resguardavam ao marido. Entregavam-se às aventuras extraconjugais como faziam suas deusas. Haja vista a mulher de Potifar que intentou levar José ao pecado.

Não se tem notícia de sacrifícios humanos no antigo Egito. Entretanto, os servos do Faraó sepultavam-se com ele nas mastabas e pirâmides, a fim de o servirem na outra vida. Quanto à escravidão, era não somente praticada, mas institucionalizada em todo o país.

5. Refúgio cultural. Entre os israelitas e os súditos do Faraó, havia um abismo cultural e religioso intransponível. Antes de tudo, porque todo pastor de rebanho era abominação aos egípcios (Gn 46.34). Estes não conseguiam entender como aqueles sacrificavam ao Deus invisível os animais, que, para eles, eram sagrados. Nenhum natural da terra ousaria levar ao holocausto um boi, porque estaria queimando o venerado Ápis, responsável pela fertilidade de suas terras.

Isolados culturalmente, os hebreus tiveram condições de preservar seus costumes, sua língua, sua ética e, principalmente, sua religião. Em tudo isso, é impossível não ver a providência divina. A região de Gósen, pois, teve um papel importantíssimo na história israelita. Foi o útero no qual Deus gestou o seu povo antes de introduzi-lo na Terra da Promissão.

III. JOSÉ, O FORJADOR DO IMPÉRIO EGÍPCIO
Quando José assumiu a governança do Egito, reinava um Faraó de origem hicsa, cujo nome ignoramos. Mas, sendo ele também semita, tratou com benignidade os filhos de Israel, concedendo-lhes a terra de Gósen por habitação. Era conhecido como rei-pastor. Por isso, confiou aos hebreus todo o seu rebanho.
Sob este monarca, José transformou o Egito no reino mais poderoso da antiguidade. Resguardando-se da religião egípcia, os israelitas resguardar-se-iam também da moral dos que a seguiam.

1. O plano econômico de José. No capítulo anterior, vimos que José, filho de Jacó, apresentou ao rei do Egito um plano econômico simples, mas eficientíssimo. Um plano que, embora fugisse aos cânones da moderna economia política, veio a salvar o Egito e os demais países do Oriente Médio.

O êxito de seu projeto residia não em sua complexidade, mas justamente em sua simpleza, pois José, em algumas palavras, expô-lo a Faraó (Gn 41.32-36).

Em seu livro Quando o Amado Desce ao Jardim, Marta Doreto de Andrade reconstitui com muita propriedade a intervenção divina através do jovem hebreu:

“O sábio conselho de José foi que, durante os anos de abastança, se armazenasse cereal suficiente para suprir a terra nos anos de escassez. Que bom se cada advertência viesse acompanhada de um conselho prático... Reconhecendo haver em José o Espírito de Deus, e que ninguém havia tão ajuizado e sábio como ele, Faraó instituiu-o governador do Egito. Possuindo agora autoridade sobre toda a nação, e devendo prestar contas unicamente ao rei, o jovem José tinha diante de si a grandiosa missão de prover para os dias de privação. Tamanha tarefa exigia planejamento, e foi o que fez ele, sabiamente. Por certo não planejou apenas meios de se recolher o mantimento, mas também de aproveitar os anos de fertilidade, encorajando e orientando o plantio.

“Não havia chuvas no Egito, e a nação dependia totalmente das cheias do Nilo para sua irrigação e fertilização. Este segundo maior rio em extensão do mundo (o primeiro é o Amazonas) é formado por dois ramos chamados Nilo Branco e Nilo Azul. O primeiro começa num lago da África equatorial, e o segundo, nas montanhas da Etiópia. No Sudão, as águas convergem num só rio, e prosseguem na direção norte, atravessando o Egito, onde se dividem em dois braços, desaguando finalmente no seu delta, no Mediterrâneo. Não fosse o Nilo, a aridez tomaria conta de tudo, e o Egito seria parte do extenso deserto que atravessa a África setentrional e a Península arábica. Foi com razão que Heródoto chamou o Egito de o ‘presente do Nilo’, uma vez que o trans-bordamento do rio fornecia a base para a economia e a prosperidade desta nação.

“Ao longo de seu percurso de aproximadamente 6.690 km, o rio penetra alguns lagos, forma seis grandes cataratas e recebe águas de alguns afluentes. Contudo, são as chuvas de verão que caem em sua cabeceira que lhe engrossam o caudal, e causam as cheias responsáveis pela fertilização de suas margens. A cada ano, por volta do mês de junho, o rio começava a transbordar na extremidade do delta, e a inundação ia crescendo até o mês de outubro, quando atingia o auge. Então as águas começavam a retroceder, voltando ao nível ordinário somente no mês de abril. Tão logo começava a vazante, os egípcios iniciavam o cultivo, pois à medida que retrocediam, as águas iam deixando no solo umedecido o seu limo humoso e fértil, preparando-o para a lavoura. Uma enchente fraca representava colheita insuficiente, e até mesmo fome. Era provavelmente desses aluviões que resultariam os sete anos de fartura prometidos por Deus nos sonhos de Faraó. O aviso divino garantia sete anos de excelentes inundações. Cabia aos homens aproveitar a bênção, arando e semeando o solo da melhor maneira possível, e armazenando adequadamente o fruto das colheitas. Que preciosa cooperação haveria entre Deus e o homem! Deus entraria com os recursos naturais; o homem, com o trabalho. Era aqui que se fazia necessário ‘um homem ajuizado e sábio sobre a terra do Egito’ (Gn 41.33).”

Prossegue a autora já citada:
“Em cada um dos sete anos de fertilidade, houve o tempo de plantar e o tempo de colher; o solo egípcio foi arado e plantado, e trigais, cuidados até o momento da sega. Então, um quinto de toda a colheita, do país inteiro, foi guardado em celeiros previamente preparados. Claro está que José não fez isto sozinho; o esforço foi nacional. Nomearam-se administradores em cada região para o ajudar na execução do plano (41.34), e o país inteiro mobilizou-se. Enquanto uns lavravam a terra, outros construíam silos em cada cidade, e até as cavernas naturais foram usadas como depósito.

“A produção da terra do Egito foi farta, como Deus prometera, e um quinto de tamanha fartura representava um estoque incalculável. Enquanto pôde, José manteve registros detalhados de todo o cereal recolhido, até que os números alcançaram tal monta, que perderam o significado, “porquanto não havia numeração (Gn 41.49).

“Nos sete anos de fartura, José guardou o excedente das colheitas. Vindo a carestia, foi buscar, nos armazéns reais, o suficiente para aplacar a fome do mundo. Nesse período, nem o Nilo, com todas as suas prodigalidades, foi capaz de salvar o país. Anukis, deusa daquele grande rio e de todas as águas, nada pôde fazer por seus filhos. Se não fora a intervenção do Deus de Israel, a mortandade teria campeado do Nilo ao Eufrates.

“A seca assolou não só o Egito, mas também a Arábia, a Palestina e a Etiópia. A diferença é que o Egito estava preparado, e agora podia sobreviver do cereal estocado. Nas demais nações, as gentes definhavam por falta de nutrientes. Essas nações não contavam com um José que as orientasse a aproveitar a estação oportuna. Felizmente, o precavido José armazenara o suficiente para sustentar o Egito e ainda amparar as nações vizinhas.”

Logo espalhou-se a notícia de que no Egito havia mantimento. “Os egípcios têm muito trigo estocado”, era o que se ouvia das bocas famintas. O trigo, cultivado desde os primórdios, é o cereal mais utilizado na panificação, em todo o mundo. Seu grão, rico em amido, e contendo proteína, é o mais importante dentre os mencionados na Bíblia, e fez sempre parte da dieta dos israelitas (Gn 27.28; 30.14), que o têm como símbolo da bondade e da provisão divina (SI 81.16; 147.14). E a provisão divina, agora, estava no Egito.

Para lá dirigiram-se as demais nações em busca de alimento. Todos iam ter com José. Em suas necessidades, de quaisquer espécies, o mundo sempre se lembra de correr para um servo de Deus. E José, em quem habitava não apenas a sabedoria, mas também o amor, “abriu tudo em que havia mantimento” (41.56).

Ninguém que apelou para ele voltou de mãos vazias. Permitam-me, uma vez mais, recorrer ao texto de Marta Doreto:

“Em breve tornou-se comum a chegada de caravanas ao Egito, em busca de pão. Mas certo dia, um grupo de dez homens chamou a atenção de José. Nas faces barbudas e empoeiradas dos viajantes, ele reconheceu os seus irmãos. Estes, ao contrário, sequer imaginaram que aquele homem vestido de linho branco, à moda egípcia, com um colar de ouro no pescoço, fosse aquele adolescente que, vinte e dois anos antes, tinham vendido como escravo. A princípio, José tratou-os rispidamente, não por vingança, mas para descobrir se haviam mudado. Depois de certificar-se de que seu pai Jacó e seu irmão Benjamim estavam vivos, e de testar-lhes de várias maneiras o caráter, ele deu-se a conhecer (Gn 42; 43; 44). José mandou vir de Canaã o restante da família, e supriu-os do que havia de melhor na terra do Egito. Seu coração perdoador e generoso colocou-o na posição de instrumento de Deus para preservação da semente de Israel (45.7)”.

2. O plano de austeridade de José. “Então acabaram-se os sete anos de fartura que havia na terra do Egito, e começaram a vir os sete anos de fome...” (Gn 41.54) A partir do oitavo ano, as águas do Nilo não subiram o suficiente para fertilizar a terra árida. Não sabemos se a produção agrícola foi zerada já no primeiro ano de fome, ou foi-se extinguindo aos poucos. O fato é que se haviam encerrado os dias da prosperidade e da oportunidade.
O momento exigia pulso firme e austeridade.
Se José não mantivesse a ordem no Egito, a desordem acabaria com o equilíbrio entre os reinos do Oriente Médio. Dentro em pouco, os países da região, organizando-se em coligações, deflagrariam uma guerra de consequências imprevisíveis, em busca de insumos básicos como o trigo e a cevada. O hebreu, portanto, não se limitava a governar um país; suas atribuições iam além: conservar a harmonia internacional. Nesse sentido, foi um dos maiores estadistas que o mundo já conheceu.

Internamente, tomou as seguintes iniciativas, a fim de preservar a ordem e, mais tarde, recuperar a economia do Egito: a arrecadação de todo o meio circulante, a compra de todos os rebanhos e, finalmente, o confisco das terras que, doravante, pertenceriam a Faraó.

Aparentemente, tais medidas em nada diferiam dos decretos baixados pelos governos socialistas da ex-União Soviética, China, Camboja, Coreia do Norte e Cuba. Todavia, há muita diferença entre o hebreu e esses monstrengos comunistas que, de quando em quando, assaltam um país em nome de uma pretensa igualdade. Os marxistas que conhecemos, desde Lênin a Fidel Castro, nivelam seus povos, tendo como parâmetro a fome, a miséria e a morte. E, na busca de uma utopia ateia e insana, já mataram milhões de pessoas. No Egito de José, entretanto, a planificação levou em conta a vida e o bem-estar das gentes. Nenhuma revolução fez-se necessária; uma intervenção humanitária foi suficiente. A dialética política fez-se dispensável.

3. O recolhimento do meio circulante. Nos sete anos de seca e carestia, os egípcios gastaram todo o seu dinheiro nos armazéns reais. Em todo o país, já não havia moeda alguma. Enquanto isso, a falta de víveres tornava-se crítica, conforme descreve o autor sagrado: “Não havia pão em toda a terra, porque a fome era mui severa; de maneira que desfalecia o povo do Egito e o povo de Canaã por causa da fome” (Gn 47.13).

Mais adiante, o relato bíblico desenha um quadro mais grave do que o da Grande Depressão de 1929. A situação era de tal forma desesperadora, que nem as classes mais abastadas viram-se a salvo: “Então, José arrecadou todo o dinheiro que se achou na terra do Egito e na terra de Canaã, pelo cereal que compravam, e o recolheu à casa de Faraó. Tendo-se acabado, pois, o dinheiro, na terra do Egito e na terra de Canaã, foram todos os egípcios a José e disseram: Dá-nos pão; por que haveremos de morrer em tua presença? Porquanto o dinheiro nos falta” (Gn 47.15).

José bem que poderia ter cunhado mais moedas, para manter o dinheiro em circulação e o funcionamento mínio da economia. Ele sabia, porém, que tal medida acabaria por levar o país a um doloroso processo inflacionário. Nesse caso, tanto a nação como o Estado em breve estariam falidos, gerando um caos de proporções catastróficas. Por isso, opta por uma prática que não era desconhecida dos egípcios: o escambo.

Se não há dinheiro, que o trigo seja trocado pelos rebanhos que ainda pasciam pelos campos ressecados do alto e do baixo Egito. Ao povo que se achava em gravíssimo aperto, a proposta de José soou mais do que razoável: “Se vos falta o dinheiro, trazei o vosso gado; em troca do vosso gado eu vos suprirei” (Gn 47.16).

Caso não atentemos ao contexto em que José governava, seremos levados a pensar que o hebreu não passava de um governante oportunista e cruel. Todavia, ele prestou um grande serviço aos egípcios: o gado já estava condenado a perecer, pois a seca infelicitava todo o Oriente Médio. Ia do Nilo ao Eufrates. Que rebanho suportaria a estiagem? Mas, recolhendo-os, o governo teria condições de mantê-los, preservando um estoque mínimo para tempos mais favoráveis.

4. Terra por trigo. Já desprovido de dinheiro e de todo o seu gado, o que os egípcios poderiam fazer? Devorando-os a fome, foram procurar novamente José: “Não ocultaremos a meu senhor que se acabou totalmente o dinheiro; e meu senhor já possui os animais; nada mais nos resta diante de meu senhor, senão o nosso corpo e a nossa terra. Por que haveremos de perecer diante dos teus olhos, tanto nós como a nossa terra? Compra-nos a nós e a nossa terra a troco de pão, e nós e a nossa terra seremos escravos de Faraó; dá-nos semente para que vivamos e não morramos, e a terra não fique deserta” (Gn 47.18,19).

Num único dia, os feudos e os latifúndios de todo o Egito são colocados sob o poder do Faraó. Mais uma vez, o governo de José mostra-se cruel e oportunista. Todavia, o que o rei recebeu em troca de pão foram propriedades estéreis, arrasadas e secas. Naquele momento, tinham nenhum valor. Ninguém as queria nem de graça. Aquelas fazendas, outrora tão produtivas e enriquecidas pelo Nilo, jaziam desertas, pois seus donos, em busca de sobrevivência, haviam se concentrado nas grandes cidades, por estarem lá os armazéns reais.

O relato de Gênesis é bastante realista quanto à situação do Egito naquele instantes: “Assim, comprou José toda a terra do Egito para Faraó, porque os egípcios venderam cada um o seu campo, porquanto a fome era extrema sobre eles; e a terra passou a ser de Faraó” (Gn 47.20).

Só não foram adquiridas as terras dos sacerdotes, pois estes eram mantidos pelas expensas reais. A fome vinha demonstrar, sutilmente, a inutilidade dos deuses pagãos. Bastou aquela carestia para que todo o sistema religioso egípcio viesse ao chão. Não fora o Deus de Israel, o Egito e as demais nações do Oriente Médio não teriam sobrevivido, porquanto a seca era grave e cruel, e já não conhecia fronteiras.

5. Um plano para reconstruir o Egito. Na voragem da crise, os egípcios já não tinham dinheiro, Se José não mantivesse a ordem no Egito, a desordem acabaria com o equilíbrio entre os reinos do Oriente Médio. nem gado ou terra. Tudo o que possuíam fora despendido na aquisição do pão cotidiano. Enquanto isso, os celeiros reais continuavam a abastecer o Egito, as nações vizinhas e os povos mais distantes. Não havia o que se negar: o país do Nilo era o celeiro do mundo. Todos dependiam das terras do Faraó para sobreviver. Aliás, durante o Império Romano, o país ainda forneceria trigo aos rincões mais distanciados do mundo.

Voltemos, porém, ao mundo de José. O que os egípcios dariam, agora, em troca de pão? Num momento de urgência e calamidade, a nação, como um todo, dá-se em serviços por sua subsistência. É o que relata o autor sagrado: “Quanto ao povo, ele o escravizou de uma a outra extremidade da terra do Egito” (Gn 47.21).

Neste instante, a pergunta faz-se pertinente: “Como um homem, que vivera as agruras da escravidão, poderia agora impô-la aos outros?” Antes de tudo, é necessário entendermos a situação do Egito naquele instante tão particular de sua história. Referimo-nos a um país arrasado e desprovido de terras produtivas. Um país, enfim, que enfrentava uma crise severíssima que se arrastaria por sete longos anos. Poucas nações chegaram a experimentar semelhante calamidade.

De 1914 a 1918, o Líbano enfrentou uma fome tão severa, que lhe devorou, em apenas dois anos, um quarto da população. Nos anos de 1941 e 1942, a Grécia, durante a ocupação nazista, veio a perder 300 mil pessoas em decorrência da falta de víveres. Na China, bastou um ano de penúria, em 1943, para que viesse a falecer mais de um milhão de seus filhos. O que dizer da Coreia do Norte? Alguns especialistas dizem que, só em 1996, mais de três milhões de homens, mulheres e crianças, pereceram por falta se insumos básicos como trigo, arroz e cevada.

José necessitava, pois, de toda a mão de obra disponível para reconstruir o Egito. Por esse motivo, conclama o povo a unir-se em prol do soerguimento nacional: “Eis que hoje vos comprei a vós outros e a vossa terra para Faraó; aí tendes sementes, semeai a terra. Das colheitas dareis o quinto a Faraó, e as quatro partes serão vossas, para semente do campo, e para o vosso mantimento e dos que estão em vossas casas, e para que comam as vossas crianças” (Gn 47.23,24).

José não queria fazer do Egito um leviatã que, às margens do Nilo, devoravam os incautos. Ele tinha em mente tornar o país viável e humanamente sustentável. A servidão, por hora, era inevitável à promoção do bem comum. Passada a contingência, os egípcios voltariam aos seus campos, semeá-los-iam e, alegremente, viveriam novamente da terra. Fazendas e sítios tornar-se-iam produtivos. Na colheita, porém, continuariam a dar 20% dos grãos ao governo. O quinto seria armazenado para que, aparecendo outra crise, o Estado tivesse condições de intervir, prevenindo especulações, carestias e inflação.

Diante do plano exposto por José, o povo responde cooperativamente: “A vida nos tens dado! Achemos mercê perante meu senhor e seremos escravos de Faraó” (Gn 47.25). O interessante é que, durante os anos de estiagem, não se registrou mortandade alguma no Egito.

José mostrou-se um governante tão sábio e precavido que, com dois planos simples e práticos, A fome vinha demonstrar, sutilmente, a inutilidade dos deuses pagãos. transformou um país subdividido e politicamente frágil no maior império do mundo antigo. O primeiro plano foi exposto ao Faraó que, comprovando-lhe a viabilidade, aceitou-o de imediato. Quanto ao segundo, foi imposto ao povo que, de igual modo, acatou-o, porque sabia que, vencida a urgência, reaveria suas terras, tornando-as ainda mais produtivas. Somente um homem iluminado pelo Espírito Santo poderia agir de semelhante forma diante de uma calamidade mundial.

A lei do quinto foi tão bem-sucedida, que o governo achou por bem perenizá-la, segundo registra o autor sagrado: “E José estabeleceu por lei até ao dia de hoje que, na terra do Egito, tirasse Faraó o quinto; só a terra dos sacerdotes não ficou sendo de Faraó” (Gn 47.26).

IV. TERMINA A ERA DE JOSÉ
Ao contrário de seus antepassados, José não teve uma vida tão longeva. Se o pai morreu aos 147 anos, e o avô, aos 180, ele falecerá aos 110 anos de idade. Apesar de uma vida não muito longeva para os padrões biológicos da época, deixou ele um legado que se faria não somente imortal, mas eterno; insere-se na História Sagrada como um de seus maiores personagens.



1. Um testemunho de fé e perseverança. Em seu discurso no Sinédrio, o diácono Estêvão referiu-se a ele de maneira particularmente gloriosa:
“Os patriarcas, invejosos de José, venderam-no para o Egito; mas Deus estava com ele e livrou-o de todas as suas aflições, concedendo-lhe também graça e sabedoria perante Faraó, rei do Egito, que o constituiu governador daquela nação e de toda a casa real. Sobreveio, porém, fome em todo o Egito; e, em Canaã, houve grande tribulação, e nossos pais não achavam mantimentos. Mas, tendo ouvido Jacó que no Egito havia trigo, enviou, pela primeira vez, os nossos pais. Na segunda vez, José se fez reconhecer por seus irmãos, e se tornou conhecida de Faraó a família de José. Então, José mandou chamar a Jacó, seu pai, e toda a sua parentela, isto é, setenta e cinco pessoas. Jacó desceu ao Egito, e ali morreu ele e também nossos pais; e foram transportados para Siquém e postos no sepulcro que Abraão ali comprara a dinheiro aos filhos de Hamor” (At 7.9-16).

José foi citado por Estêvão, porque o seu exemplo vem inspirando seguidas gerações. Ele jamais deixará de ser contemporâneo. Não há quem não chore ao ouvir-lhe a história. Como um homem, vendido como escravo, veio a salvar o mundo? Num momento de emergência e tribulação, ordenou o rei aos súditos: “Ide a José”. Ele, porém, não era um simples governador. Profeta de Deus, sabia que o Senhor achava-se no comando de todas as coisas.

2. A profecia de José. Pressentindo a própria morte, José conclama seus irmãos e, no último ato do Gênesis, profetiza o Êxodo: “Eu morro; porém Deus certamente vos visitará e vos fará subir desta terra para a terra que jurou dar a Abraão, a Isaque e a Jacó” (Gn 50.24).

Quem haveria de se lembrar de uma promessa que já se fazia história? José, porém, tinha certeza de uma coisa: Israel não permaneceria no Egito. Apesar de Gósen exibir tantas excelências e faturas, era-lhes uma terra tão estranha quanto Ur. Portanto, apesar dos 400 anos que ainda tinham pela frente, o dia da redenção não estava tão longe. Os israelitas haveriam de deixar o país do Faraó, para se apossarem da mais formosa das heranças.

José estava prestes a reunir-se aos seus antepassados. Na congregação dos justos, estaria junto a Jacó, Isaque, Abraão, Sem, Noé, Enoque e Abel. A História Sagrada, porém, não seria descontinuada. Passados mais quatro séculos, os israelitas tomariam parte do maior evento soteriológico do Antigo Testamento: o Êxodo.

3. O último desejo de José. Voltemo-nos aos instantes finais de José. Após mencionar o Êxodo, faz um derradeiro pedido aos seus irmãos: “Certamente Deus vos visitará, e fareis transportar os meus ossos” (Gn 50.25). Ele tinha certeza, naquele instante final do Gênesis, de que o Êxodo dar-se-ia na estação apropriada. Foi um ato de fé, conforme realça o autor da Epístola aos Hebreus: “Pela fé, José, próximo do seu fim, fez menção do êxodo dos filhos de Israel, bem como deu ordens quanto aos seus próprios ossos” (Hb 11.22).

Ao pedir aos irmãos que os seus ossos subissem do Egito a Canaã, almejava José participar da grande procissão à terra de seus ancestrais. Além da fé tão comum aos santos, o governador do Egito era movido por uma imperturbável convicção profética.

4. A morte de um benfeitor da humanidade. Segundo algumas cronologias, José falece por volta de 1800 a.C. Embora a data seja imprecisa, ajuda-nos a situar a narrativa sagrada no cenário secular. Vivesse ele em nossos dias, seria laureado com, pelo menos, com dois prêmios nobéis: o de economia e o da paz. Além de administrar um país em gravíssima crise, soube como manter a paz no mundo. Em momento algum, fez uso do poderoso exército que se achava ao seu dispor. Não empreendeu guerras de conquistas, nem tiranizou as nações mais fracas.

Agindo dessa forma, manteve a ordem e a concórdia em todo o Oriente Médio. Nenhum país teve de ameaçar o Egito para obter o trigo que excedia nos armazéns e silos do Faraó. José abriu-lhes liberalmente os celeiros, de maneira que todos tiveram acesso a uma subsistência digna naqueles tempos de carestia.

CONCLUSÃO
O livro de Gênesis é encerrado, aparentemente, com uma nota de condolência: “Morreu José da idade de cento e dez anos; embalsamaram-no e o puseram num caixão no Egito” (Gn 50.26).

Nessas palavras, todavia, não temos nenhum informe fúnebre. Temos, sim, o epílogo triunfal de um homem que, dando-se ao seu povo, entregou-se para livrar o mundo de uma fome severa e sem precedentes. Embora levado ao Egito como escravo, de lá saiu triunfalmente nos ombros daqueles que ajudou a salvar. Sem ele, não haveria as condições necessárias para a atuação de Moisés, Arão e Josué.

Enfim, ele preparou o terreno para o êxodo hebreu. Após a sua morte, teve o corpo embalsamado, mas não foi transformado numa múmia como aquele Faraó que, nos dias de Moisés, perseguiu e escravizou os filhos de Israel.

José foi um herói da fé. Quer escravo, quer senhor, o seu exemplo continua a inspirar gerações. Ele jamais deixou de ser contemporâneo de nossos meninos, adolescentes e jovens. Íntegro e fiel, ergue-se, nestes dias de escândalos e corrupções, como paradigma de um administrador que, de fato, se preocupou com o bem comum.
Que a sua história leve-nos a um compromisso mais sério com o Deus de Israel.
Amém!

"Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve." Mateus 11:28-30


Fonte:
O começo de todas as coisas - Estudos sobre o Livro de Gênesis - 4º trim.2015
O começo de todas as coisas - Estudos sobre o Livro de Gênesis - Claudionor de Andrade (Livro de Apoio)

Aqui eu Aprendi!
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