Defender o direito à vida do
nascituro é a prova do compromisso com a dignidade do ser humano e a
sacralidade da vida. A vida é santa, É uma dádiva de Deus. Só se pode defender
o aborto quando se perde a dimensão sacra da vida e compreensão de dignidade
humana inerente à sua natureza. Quando se remove o transcendente, e foca-se
somente numa ética materialista, o embrião é visto apenas como um amontoado de
células que pode ser desprezado por qualquer motivo. Por isso, urge por
aprofundarmos a visão bíblica e sacra da vida afim de que a cultura da morte,
instaurada em nossa sociedade, seja finalmente sufocada.
Ética Cristã e Aborto
O tema do aborto implica diretamente a
dignidade humana e na inviolabilidade do direito à vida. Posições contrárias e
favoráveis ao aborto sempre estiveram presentes na história da humanidade. As
civilizações dos sumérios, os babilônios, os assírios, os hititas e os
israelitas consideravam o aborto como um crime de maior gravidade. Em
contrapartida, a cultura espartana (séculos V e IV a.C.), que era centrada na
formação do “hoplita” — o soldado perfeito — os recém-nascidos que
apresentassem alguma doença, má formação ou sinais de debilidade eram jogados
do precipício a fim de serem descartados (GARCIA, 2011, p. 25). Os filósofos
Platão e Aristóteles também consideravam o aborto e o infanticídio como
instrumento de eliminação dos fracos e inválidos, que, segundo eles, eram um
estorvo e nada podiam acrescentar ao bem comum. Em seu livro A República,
Platão também defendeu a interrupção da gestação em todas as mulheres que
engravidassem após os 40 anos (PLATÃO, 2000). Andrade registra que, em certa
ocasião, Aristóteles aconselhou desabridamente: “Quanto a saber quais os filhos
que se devem abandonar, ou educar, deve haver uma lei que proíba alimentar toda a
criança disforme” (2015, p. 60).
I. ABORTO: CONCEITO GERAL E BÍBLICO
Em termos gerais, a prática do aborto é a
interrupção da gravidez. Tal procedimento continua sendo um polêmico debate.
Uma parcela da sociedade contemporânea o considera como um direito da mulher.
As opiniões divergem em duas vertentes: os “Pró-Vida”, que são contrários ao
aborto, e os militantes “Pró-Escolha”, que são favoráveis. Diante da
problematização ética e moral que envolve esses grupos, apresentamos o conceito
geral e bíblico do aborto.
1. Conceito Geral de Aborto
Conceitualmente, o aborto é a interrupção do
nascimento por meio da morte do embrião ou do feto. Algumas literaturas
identificam o aborto como feticídio cujo significado é a “morte do feto”. A
palavra latina fetus significa “pequenino” e representa o ser que se presume
vivo.
Sob
essa perspectiva, o ato de “abortar” é caracterizado pela descontinuidade do
processo natural de gestação do ser vivo. O termo gestação é originário da
palavra em latim gestacione, que faz referência ao tempo em que o embrião fica
no útero, desde a concepção até o nascimento. Portanto, esse termo pode ser
aplicado a todos os animais que possuem um útero, que é parte integrante e mais
importante do aparelho reprodutor feminino, nesse caso, dos mamíferos. Contudo,
a aplicação do termo “descontinuidade da gestação” quando relacionado com a
ética e a moral cristã refere-se à interrupção da gravidez da mulher. A essa
interrupção dá-se o nome de aborto, que pode ser involuntário ou provocado com
ou sem a expulsão do feto, resultando na morte do nascituro.
2. O Aborto no Contexto Legal
Considerado um dos mais antigos diplomas
jurídicos, o código do rei Hamurabi (1810-1750 a.C.) apresentava severas
punições contra o aborto. O código foi criado na Mesopotâmia por ocasião da
primeira dinastia babilônica. Trata-se de um conjunto de 218 leis escritas em
caracteres cuneiformes em uma coluna de basalto negro. O código previa
indenizações à mulher no caso de aborto provocado. Os valores sofriam variações
a depender se a mulher era livre ou escrava. No caso de a mulher vir a morrer
como consequência do aborto provocado, o culpado era punido com a pena de
morte.
No Código Criminal do Império no Brasil (1830), o aborto e o
infanticídio eram punidos com prisão e trabalho forçado. Se a mãe matasse o
filho recémnascido, a pena era de um a três anos de prisão e trabalho forçado
(Art. 198). Mas no caso de aborto com o consentimento da mãe, a pena era ainda
maior, de um a cinco anos de trabalhos forçados no sistema prisional da época
(Art. 199).
Também
no célebre juramento de Hipócrates, do século V a.C., que influenciou toda a
história da medicina ocidental, estava incluso um voto específico em que o
médico se comprometia a não realizar nem a eutanásia nem o aborto (PALLISTER,
2005, p. 141). O juramento era recitado pelos médicos no dia da formatura nos
seguintes termos: “Não darei a nenhuma mulher um pessário1 para provocar um
aborto” (KAISER JR, 2016, p. 138). Em 1949, a Declaração de Genebra ratificou
esse compromisso, mas não como juramento. Na década de 1960, a Associação
Médica Mundial reformulou a declaração e deixou margem para a prática do aborto
em algumas circunstâncias.
Na
legislação brasileira atual, o aborto é permitido nos casos de risco de morte à
mulher e estupro (Art. 128, CP). Também é permitido a prática do aborto nos
casos de anencefalia, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal — ADPF n.
54. Nos demais casos o aborto ainda é crime (Art. 124, CP). Contudo, em
novembro de 2016, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que
aborto até os três meses não é crime, abrindo um precedente para a
descriminalização. Eles julgaram uma ação movida pelo Ministério Público
envolvendo pessoas de Duque de Caxias (RJ) com a prática do crime de aborto
consentido pela mãe. Durante a leitura de seu voto, o ministro Luís Roberto
Barroso esboçou com clareza que está alinhado e concorde com a ideologia de que
“a mulher tem direito sobre o próprio corpo” e, portanto, tem o direito de
interromper a gravidez indesejada:
A criminalização antes do terceiro mês de
gestação viola a autonomia da mulher, o direito à integridade física e
psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero,
além de provocar discriminação social e um impacto desproporcional desta
criminalização sobre as mulheres pobres.2
Embora essa decisão teve efeito inter partes,
ou seja, exclusivamente para o caso de Duque de Caxias, no dia 7 de março de
2017, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) protocolou uma Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 442, questionando os artigos
124 e 126 do Código Penal Brasileiro, que pune com até três anos de detenção a
mulher que praticar aborto e até com quatro anos de prisão ao profissional que
realizar o procedimento. Nessa ADPF, o pedido é de que o aborto deixe de ser crime
até a 12a semana de gestação. O PSOL argumenta que o embrião não tem status de
pessoa constitucional, baseado em decisões do próprio STF, que já arbitrou
sobre a morte de embriões para as pesquisas com células troncoembrionárias e já
autorizou o aborto de anencéfalos.
3. Conceito Bíblico de Aborto
Na lei mosaica, provocar a interrupção da
gravidez de uma mulher era tratado como ato criminoso. A legislação prescrevia
o pagamento de multa a quem provocasse a descontinuidade da gestação em alguma
mulher. O valor dessa multa deveria ser estipulado pelo pai da criança com a
aquiescência dos magistrados (Êx 21.22-25). No sexto mandamento, o homem foi
proibido de matar (Êx 20.13), o que significa literalmente “não assassinar”. Os
intérpretes do Decálogo concordam que o aborto está incluso nesse mandamento.
Assim, quem mata um embrião ou feto peca contra Deus e contra o próximo. Os
preceitos divinos consideram injustificada e digna de punição a morte de
inocentes (Êx 23.7). Todavia, os defensores da posição Pró-Escolha apelam que o
texto de Êxodo 21.22-25 acima referenciado não considera o aborto como sendo a
morte de uma pessoa. O preceito bíblico diz textualmente:
Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma
mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano,
certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e
julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura,
ferida por ferida, golpe por golpe. (Êx 21.22-25)
O argumento considera que a legislação estipula
a Lex Talionis “lei de talião ou lei da retribuição” (vida por vida) no caso de
morte como resultado de luta corporal entre homens envolvendo mulher grávida.
Os militantes PróEscolha disputam que a frase “não havendo outro dano” — apenas
o aborto — significa dizer que a única penalidade deve ser uma multa. Isso
implica afirmar que o aborto não é considerado morte; por isso, requer-se
somente a multa, e não a “vida por vida”. Arrazoam também que a expressão “se
houver morte” refere-se à morte da mulher que sofreu o aborto, e não a morte do
feto. E, nesse caso, na morte da mulher, a lei de talião é requerida. A
respeito desse questionamento, a falácia está na tradução do verbo “abortar” da
versão de João Ferreira de Almeida. O verbo hebraico shakal, que normalmente
tem o sentido de “abortar”, não aparece aqui, ao contrário, o verbo utilizado
pelo autor bíblico é yasa, que se refere ao nascimento de uma criança viva.
Desse modo, a tradução da Nova Versão Internacional (NVI) está mais
explicativa, onde se pode ler: “Se homens brigarem e ferirem uma mulher
grávida, e ela der à luz prematuramente, não havendo, porém, nenhum dano sério,
o ofensor pagará a indenização”. Assim, no caso de uma mulher grávida ferida em
uma briga antecipar o parto, e a criança viver, os causadores do parto
prematuro pagam somente a indenização pelos danos causados, mas se a criança
não sobreviver e ainda até a mãe morrer, paga-se “vida por vida”. Portanto, o
uso desse texto para justificar a prática do aborto não se sustenta por ser um
argumento inválido.
4. O Aborto na História da Igreja
“O ensino dos dez apóstolos” chamado de
Didaquê (século I d.C.) condena o aborto e o infanticídio. Esse documento
cristão foi escrito entre 60 e 90 d.C., provavelmente na região da Palestina ou
na Síria. Dividido em quatro partes, contendo dezesseis capítulos, é a mais
antiga fonte de legislação eclesiástica extrabíblica disponível aos cristãos do
período pós-apostólico. Retrata a tradição das primeiras comunidades cristãs e
a sua mensagem permanece válida para os dias de hoje. Entre outros preceitos, o
documento estabelece: “Não mate, não cometa adultério, não corrompa os jovens,
não fornique, não roube, não pratique a magia nem a feitiçaria. Não mate a
criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido” (Didaquê II,2).
O
apologista da igreja Tertuliano (viveu por volta de 150 a 220 d.C.), nascido em
Cartago de família pagã abastada, ensinou que a morte de um embrião tem a mesma
gravidade do assassinato de uma pessoa já nascida e que impedir o nascimento é
um homicídio antecipado. Entre os anos de 197 e 220 d.C., Tertuliano,
considerado o pai da teologia latina, dedicou-se a carreira de escrever e produzir
obras em defesa do cristianismo. Sua escrita era vívida, satírica e fácil de
ler. Seu método assemelha-se ao de um advogado expondo seus argumentos em um
tribunal. Ao se dirigir aos romanos acerca da interrupção da gravidez, explicou
assim:
Em nosso caso, já que proibimos o homicídio em
qualquer forma, não podemos destruir nem sequer ao menino na matriz […] Impedir
que nasça um menino é somente uma forma de matar. Não há diferença em se matar
a vida do que já nasceu, ou se matar a vida do que não nasceu ainda. (BERCOT,
2012, p. 31, 32)
O polemista Agostinho de Hipona e os teólogos
Jerônimo de Estridão e Tomás de Aquino consideravam pecado grave interromper a
gestação e o desenvolvimento da vida humana. Embora a compreensão de Agostinho,
quanto ao início da vida, divergisse de Tertuliano, o bispo africano “chegou a
chamar de prostitutas as mulheres que, para escapar às consequências de sua
vida imoral […] matavam o filho que traziam no ventre” (ANDRADE, 2015, p. 58).
Jerônimo, autor da vulgata latina, considerou as mulheres que escondiam a
infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério,
suicídio e assassinato dos filhos. Aquino, autor da Suma Teológica, afirmava
que a vida e o ser humano são inseparáveis, e, portanto, ambos são também
invioláveis. Percebe-se, desse modo, que a valorização da dignidade humana, o
direito à vida e o cuidado à pessoa vulnerável são princípios e doutrinas
imutáveis da igreja cristã.
II. O EMBRIÃO E O FETO SÃO UM SER HUMANO
Fecundação,
embrião e feto são os nomes das três etapas da gestação. O período gestacional
é composto de 40 semanas que são fundamentais para a formação do bebê. Após o
ato sexual, o espermatozoide sobrevive, em média, 72 horas (ou seja, cerca de 3
dias) dentro do corpo da mulher à espera que um óvulo seja liberado pelo
ovário. O óvulo, depois de liberado, está disponível para ser fecundado apenas
entre 12 e no máximo 24 horas. A fecundação ocorre na união entre o óvulo e o
espermatozoide — que dá origem ao zigoto e que se instala no útero após uma
série de divisões celulares. O termo embrião é usado para definir um organismo
que está nos primeiros estágios de desenvolvimento. Ele é formado 24 horas após
a fecundação. O período de desenvolvimento do feto decorre desde a 8ª semana
até ao nascimento, e é um tempo de crescimento e desenvolvimento. Neste tópico,
analisaremos em qual dessas três fases se dá o início da vida.
1. Quando Começa a Vida
No IV século a.C., o filósofo Aristóteles
ensinava que a vida iniciava com o primeiro movimento do feto no útero materno.
Segundo sua teoria, no caso do feto masculino, essa manifestação aconteceria no
40º dia de gestação, e no feto feminino, apenas no 90º dia. Aristóteles
inferiorizava as mulheres, e por isso acreditava que o feto feminino se
desenvolvia mais lentamente. Obviamente que essas suposições do filósofo eram
descabidas e arbitrárias, e foram cientificamente descartadas.
Quanto
aos cientistas, muitos concordam que a vida tem início na fecundação, quando o
espermatozoide (gâmeta masculino) e o óvulo (gâmeta feminino) se fundem gerando
a nova célula chamada “zigoto”. Essa nova célula possui uma identidade genética
própria, diferente da que pertence aos que lhe transmitiram a vida, e a
capacidade de regular o seu próprio desenvolvimento.
Outros
pesquisadores defendem que a vida inicia com a fixação do óvulo fecundado no
útero, onde recebe o nome de embrião — o que ocorre entre o 7º e o 10º dia de
gestação. Outras correntes estabelecem que a vida humana se origina na
gastrulação — estágio que ocorre no início da 3ª semana de gravidez. Nesse
ponto, o embrião, que é menor que uma cabeça de alfinete, é um indivíduo único
e a partir desse momento ele seria um ser humano. Outros apontam o começo da
vida por volta do 14º dia, quando ocorre a formação do sistema nervoso. E isso
pelo fato de que países como o Brasil e os Estados Unidos definem a morte como
a ausência de ondas cerebrais.3 A vida começaria, portanto, com o aparecimento
dos primeiros sinais de atividade cerebral. Tem ainda aqueles que indicam o
começo da vida quando o feto tem condições de viver fora do útero, por volta da
25ª semana de gestação. E também os que defendem que a vida só tem início por
ocasião do nascimento do bebê.
2. O que Diz a Bíblia?
Para a polêmica que envolve o aborto, definir
quando o embrião ou o feto se torna humano, se na fecundação (concepção), no
nascimento ou em um ponto intermediário, é uma questão de suprema importância.
Como as respostas humanas têm sido controversas, o cristão deve buscar a
verdade na revelação divina. A Palavra de Deus é incisiva ao ensinar que a vida
tem início na fecundação. Acerca disso, registrou o profeta Jeremias: “Antes
que te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te
santifiquei; as nações te dei por profeta” (Jr 1.5). Esse texto indica que,
antes de qualquer desenvolvimento do embrião, ou seja, na concepção e ainda
antes do nascimento do feto, Deus já considerava o profeta como um ser humano.
Nessa
mesma sequência interpretativa, o rei Davi descreve sua existência como ser
vivo desde o início da concepção: “Os teus olhos viram o meu corpo ainda
informe, e no teu livro todas estas coisas foram escritas, as quais iam sendo
dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas havia” (Sl 139.16). Por
conseguinte, de acordo com as Escrituras, a vida começa quando ocorre a união
do gameta masculino ao feminino. Essa nova célula é um ser humano e possui
identidade própria e, portanto, o seu direito de nascer não pode ser
interrompido por vontade, desejos ou caprichos do homem.
A
presença das virtudes divinas pode ser observada em cada uma das etapas de
formação do ser vivo. Os versos do Salmo 139 focalizam as virtudes da
onisciência, onipresença e onipotência divina. O salmo reconhece que é Deus
quem cria o íntimo de nosso ser. As pessoas são conhecidas e cuidadas pelo
Senhor desde a concepção (Sl 139.13a). Deus é quem forma o ser dentro do ventre
da mãe. O ser vivo é formado de modo “assombroso” e “maravilhoso” (Sl
139.13b-14). O salmista afirma que Deus vê o embrião ainda informe, e o ama em
todos os processos formativos, desde a fecundação, nascimento e por toda a sua
vida (Sl 139.15-16). Para Deus, o embrião não é “só um punhado de tecidos”; ao
contrário, Deus já sentia afeto e amor por nós quando estávamos sendo tecidos
dentro do ventre de nossa mãe (KAISER JR, 2005, p. 146).
3. Qual a Posição da Igreja?
Na igreja protestante, por meio da reforma
efetivada por Lutero e apoiada nas Escrituras, os cristãos que mantêm os
princípios teológicos e a ortodoxia defendem a dignidade humana desde a sua
concepção, ou seja, que o começo da vida acontece na fecundação. Ratificam o
ensino de que a vida humana é sagrada em todas as etapas do desenvolvimento do
ser vivo e que não pode ser violada pelo homem (1 Sm 2.6). Divulgam que toda
ideologia que seculariza os princípios bíblicos deve ser combatida (2 Tm 3.8).
Nesse aspecto, a posição oficial das Assembleias de Deus no Brasil foi assim
exarada: “A CGADB é contrária a essa medida [aborto], por resultar numa licença
ao direito de matar seres humanos indefesos, na sacralidade do útero materno,
em qualquer fase da gestação, por ser um atentado contra o direito natural à
vida” (Carta de Brasília, 41ª AGO, 2013).
III. TIPOS DE ABORTOS E SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICAS
Como já mencionado acima, a legislação
brasileira autoriza a interrupção da gravidez em duas situações: aborto em caso
de estupro e aborto terapêutico. Assim como nos casos de anencefalia do feto,
estabelecida pela Suprema Corte brasileira. Já foi dito também que tramita no
STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para que o
aborto deixe de ser crime até a 12a semana de gestação.
Neste tópico, apresentamos as principais
implicações éticas para esses tipos de aborto, os que já estão legalizados e
aqueles que poderão ser descriminalizados. Quando a Igreja se posiciona
eticamente contrária a essas decisões legais, não significa dizer que somos
retrógrados ou que somos insensíveis às dificuldades e à complexidade de uma
gravidez indesejada:
Qualquer escolha nesta área da vida compreende
muito mais do que apenas cálculos humanos definíveis [...] Mas indica, sim, que
Deus ainda é Senhor da história e que ele pode transtornar os cálculos humanos,
e muitas vezes o faz. Portanto, maior peso deve ser colocado sobre o respeito
pelos princípios teológicos básicos apresentados na revelação bíblica. (HENRY, 2007,
p. 22)
A despeito das decisões humanas, a verdade
bíblica quanto ao aborto não pode ser relativizada. O princípio de defesa da
vida humana não pode conter exceções. Em uma sociedade secularizada, o cristão
precisa tomar cuidado com o relativismo, não fazer concessões e estar alerta
quanto às ações de manipulação de sua consciência e o desrespeito à vida humana
(1 Tm 4.1,2).
1. Aborto de Anencéfalo
Em abril de 2012, o STF permitiu a interrupção
da gravidez de feto anencéfalo (sem cérebro ou com má formação cerebral),
bastando para isso o diagnóstico médico que ateste anencefalia. A principal
implicação ética dessa decisão está no descarte de um ser humano por apresentar
uma má formação. Trata-se de uma ideologia racista chamada “eugenia”, que
defende a sobrevivência apenas dos seres saudáveis e fortes. A eugenia alcançou
níveis extremos com o nazismo e o holocausto. Hitler e seus seguidores almejavam
atingir a pureza racial e, para isso, eliminaram os inválidos, velhos, doentes
e os considerados fracos.
2. Aborto em Caso de Estupro
Segundo o Código
Penal, em vigor desde 1940, somente as situações previstas nas alíneas do Art.
128 autorizam a eliminação da vida intrauterina, ou seja, a prática do aborto.
O artigo preconiza textualmente:
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por
médico (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da
gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o
aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
Diante do previsto do artigo acima
referenciado, analisaremos neste tópico, o inciso II, que trata da gravidez
resultante de estupro. Precisamente, no que tange às questões éticas e seus
desdobramentos. Conforme preconiza a Norma Técnica do Ministério da Saúde sobre
Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra
Mulheres e Adolescentes, não se exige qualquer documento que comprove o abuso
sexual, basta a versão da vítima e o consentimento da mulher para que o aborto
seja realizado. Ou seja, a mulher vítima de violência sexual não tem o dever
legal de notificar o fato à polícia. A palavra da mulher que buscar o aborto
sob a alegação de ter sofrido estupro deve ser entendida como presunção de
veracidade. Como não é necessária a comprovação do crime de estupro e nem
autorização judicial para o aborto, a lei é permissiva e complacente com a
interrupção da gravidez mesmo que o estupro não tenha ocorrido. Os que fazem
objeção a essas questões éticas argumentam que vítima já sofreu o suficiente e
que não deve ser submetida a outros constrangimentos.
A
Bíblia Sagrada, porém nos adverte: “Enganoso é o coração, mais do que todas as
coisas, e perverso; quem o conhecerá?” (Jr 17.9). E acrescenta:
“Porque do interior do coração dos homens saem
os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos,
a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a
soberba, a loucura” (Mc 7.21,22).
Outra questão a se discutir refere-se ao
Código de Ética Médica (CEM). O Código
assegura ao médico:
Exercer sua profissão com autonomia, não sendo
obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a
quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso
de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do
paciente. (Código de Ética, Inciso VII, Cap. I)
De acordo com essa redação, o direito de recusa
por causa da consciência é algo utópico, pois o Código, de modo conflitante,
veda ao médico “descumprir legislação específica nos casos de transplante de
órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento” (Art.
15, Cap. III). Assim, ao mesmo tempo que se garante ao médico a objeção de
consciência, o profissional está obrigado a realizar o abortamento,
juridicamente permitido, na ausência de outro médico que o faça (Código de
Ética Médica, 2010).
De outro lado, discute-se também a inviolabilidade do
direito à vida do nascituro. A Constituição Federal promulgada em 1988 assegura
que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade” (Art. 5º, Caput). O Código Civil, em vigor desde 2002, ao tratar
da “personalidade e da capacidade”, protege a vida desde a concepção ao
legislar que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida;
mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (Art. 2º do
CC). Esse dispositivo é interpretado por diversos civilistas do seguinte modo:
“Embora a vida se inicie com a fecundação, e a vida viável com a gravidez, que
se dá com a nidação, entendemos que na verdade o início legal da consideração
jurídica da personalidade é o momento da penetração do espermatozoide no óvulo”
(DINIZ, 2012, p. 102). Pode-se, então, com esse dispositivo legal, considerar o
início da vida na concepção e assim caracterizar o aborto como atentado à vida.
Outra
questão ética a ser levantada relaciona-se ao fato de que um crime não pode
justificar outro crime. O crime de estupro não pode ser justiçado com a morte
do feto que não tem culpa alguma da violência praticada. A lei de talião foi
abolida e reinterpretada por Cristo: “Ouvistes o que foi dito: Olho por olho,
dente por dente? Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele
que te fere na face direita oferece-lhe também à esquerda” (Mt 5.38,39). Apesar
de reconhecer o trauma, a dor, os problemas psicológicos e sociais que podem
resultar da gravidez indesejada, a ética cristã não pode ser relativizada.
Outras soluções podem ser encontradas a fim de ajudar a mãe sem que seja
necessária a morte de um ser vivo.
3. Aborto Terapêutico
Como está redigida a legislação brasileira,
explicitada no Código Penal, não se considera crime ou não aplica pena no
aborto praticado para salvar a vida da gestante (Inciso I, Art. 128). Esse
dispositivo, motivo de exclusão da punição, está previsto no código vigente com
o nome de “aborto necessário”, situação em que está enquadrada a interrupção
voluntária da gravidez. No entanto, o preceito legal não explica em que
situações o aborto é necessário, apenas enuncia “se não há outro meio de salvar
a vida da gestante”. Diante dessa brecha legal, juristas e penalistas
consideram a vida da mãe superior à vida da criança.
Desse modo, o problema ético se sobressai e
coloca em conflito o “direito à vida da mãe” e o “direito à vida de seu filho”.
Assim, por meio do diagnóstico médico, que se pressupõe ser apto para julgar a
qualidade da vida humana, pode-se decidir entre “ter os filhos que se quer e
não ter os que não se quer”. Quanto a essa imprecisão legal, renomados médicos
se posicionaram contra o “aborto necessário”.
Sob
outra ótica, como efeito colateral no tratamento da saúde, uma gestante pode
correr o risco de abortar, porém, nesse caso, não existe intenção de provocar o
aborto, e sim de tratar a doença. No entanto, a situação é diferente quando o
médico age intencionalmente para matar a criança a fim de preservar a mãe. Essa
ação é justificada, como vimos, com a alegação de que a vida de um adulto tem
maior valor que a vida de um ser em gestação. Daí surgem questões éticas quanto
à valoração da vida humana. Uma pessoa merece viver e outra não? Outra questão
é acerca do poder sobre a vida. Podemos decidir quem deve viver ou morrer? Não
afirmam as Escrituras que a vida e a morte são, unicamente, da alçada divina?
(1 Sm 2.6; Fp 1.21-24)
1 Pequeno dispositivo flexível que é inserido
no órgão genital feminino.
2 Habeas Corpus 124306 — Supremo Tribunal
Federal. Disponível em
.
Acessado em 07 de outubro de 2017.
3 Determina a legislação brasileira que
para a constatação da morte de uma pessoa é necessário a realização de exames
clínico-neurológicos, a fim de testar possíveis reflexos cerebrais. No caso de
pacientes acima de 2 anos, é imprescritível que, ao mínimo, dois médicos
atestem o óbito, com o intervalo de seis horas.